No último dia 16 de julho, o mundo católico ficou novamente perplexo como não ficava há 37 anos quando Dom Lefebvre publicou sua carta aberta.
No dia litúrgico da comemoração de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidade do Recife, Francisco publicou um motu proprio que retroage a questão da Missa à situação que estava antes do motu proprio Ecclesia Dei de João Paulo II em 1988 (curiosamente todos esses acontecimentos ocorreram no mês de julho, inclusive o motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI).
Dois pontos do motu proprio de Francisco se destacam: qual é o Rito Romano e a revogação das disposições anteriores ao Traditionis custodes. Além disso, também são estranhos dois outros aspectos que são a falta de vacatio legis e a justificativa principal que motivou Francisco a publicar o documento.
O primeiro artigo do motu proprio afirma que a única expressão do Rito Romano é o Missal de Paulo VI, sem entrar no aspecto dos usos do Rito Romano, mas certamente negando a legitimidade do Missal promulgado pelo Papa São Pio V e editado até 1962 (Missal de João XXIII).
Francisco também anula todas as concessões anteriores. Repito: todas. Isso inclui também a Quo primum? Simplesmente Francisco ignora todos os debates acerca da legitimidade perene que o Papa São Pio V quis dar a sua Bula. Outro absurdo de Traditionis custodes foi a ordem de aplicação imediata, algo extremamente incomum na ordenação jurídica.
O último ponto de destaque é a justificativa de Francisco para sua decisão, além de colocar a responsabilidade para os bispos. Para ele tudo foi feito para salvaguardar a unidade da Igreja. Ora, das notas da Igreja, as maiores são a santidade e a apostolicidade, uma vez que são notas positivas.
Ainda analisando esse ponto, quais os frutos de santidade do Missal de Paulo VI? E se houvesse, por absurdo, são eles maiores que os frutos de santidade do Missal tradicional? Jamais seriam e isso demonstra-se em textos já publicados neste site (Participação ativa e Valor dos frutos da Missa). A preocupação dos pastores não deveria ser a salvação das almas que, na prática, é a santidade dos fiéis?
Ao contemplar o aspecto da apostolicidade, a justificativa de Francisco cai por terra totalmente. A apostolicidade de um Rito é mostrada com o vínculo dele com os Padres da Igreja. Todos os ritos católicos têm um Padre como autor [1]. Qual o vínculo apostólico do Missal de Paulo VI? É uma verdadeira ruptura com a Sagrada Tradição Apostólica (indicamos a leitura de Irmãos e bastardo).
Desfaz-se a justificativa da unidade, pois sem a santidade o que subsiste é a coesão no erro e, ipso facto, deve ser combatida veementemente, pois o erro não tem direitos [2].
Por fim, o que o documento de Francisco impõe ao mundo católico é tomada de decisão, escolha de lados. Exigência não apenas sobre qual Missal expressa o Rito Romano, mas exige-nos convicção a algo ainda mais essencial: a diferença entre o Rito Romano e o Missal de Paulo VI quanto à Fé.
Francisco exige resposta a isso: o Missal de Paulo VI, alicerçado na doutrina do Vaticano II, expressa a Fé católica?
Se a reposta for afirmativa, então as celebrações no Rito Gregoriano são, em última análise, questões estéticas e aquele que é tido como Papa da Igreja pode sim coibir uma forma antiga, démodé e que não comunica mais ao homem moderno. Os que assim pensam têm que admitir que a forma modernista de celebrar a Missa conforme o Missal reformado segundo o Concílio Vaticano II sem dificuldades apresentará toda a riqueza espiritual do Rito Romano (cf. Carta do Santo Padre Francisco aos bispos do mundo para apresentar o motu proprio Traditionis custodes sobre o uso da liturgia romana antes da reforma de 1970, §7).
A esses não pode existir a mínima possibilidade de desobediência à autoridade (no máximo, talvez, tolera-se a crítica filial.)
Entretanto, se a reposta for negativa [3], ou seja, o Missal de Paulo VI não expressa a Fé católica, antes a obscurece ou mesmo nega-a, de forma que esse Missal é mais protestante que católico (mantendo do antigo Missal apenas a estrutura básica), a esses cabe não só a desobediência, como, na verdade, impõe-se.
Francisco, através do motu proprio Traditiones custodes, exigirá que todos os mornos tomem finalmente uma posição: ou quente ou frio.
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Nota
[1] Para citar: o Rito Bizantino atribuído a São João Crisóstomo e o Rito Romano ao Papa São Gregório Magno.
[2] Importante salientar que a unidade da Igreja tão apreciada por Francisco não foi lembrada diante de vários escândalos provocados por ele mesmo, como a Amoris lætitia (com texto aqui), a mudança no catecismo na questão da pena de morte (Francisco percebeu agora, após milênios que ela vai de encontro à dignidade humana), o culto a Pachamama (ídolo pagão) feito na Basílica de São Pedro, a ordem para que políticos americanos abortistas recebam a comunhão eucarística ou os vexames doutrinários do clero alemão.
[3] Como pensamos e por isso indicados a leitura do Considerações sobre o Ordo Missæ de Paulo VI, o Breve exame crítico, a novidade do Mistério pascal e outros textos sob a categoria Crise.