I ARTIGO: DEUS (PARTE 2 DE 4)

deus

O Credo católico tem como premissa a existência de Deus; passamos então à indagação: o que (ou quem?) é Deus?

Deus é a essência (ou natureza) espiritual infinitamente perfeita, que existe por Si mesma e de Quem todos os outros seres recebem a existência. A natureza de Deus é Ser (ou existir), ou seja, Ele existe por propriedade natural. A Igreja confessa essa verdade pelo seu Magistério infalível:

A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa que há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, incompreensível, infinito em intelecto, vontade e toda a perfeição; o qual, sendo uma substância espiritual una e singular, inteiramente simples e incomunicável, é real e essencialmente distinto do mundo, sumamente feliz em Si e por Si mesmo, e está inefavelmente acima de tudo o que existe ou fora dele se possa conceber (Concílio Vaticano I, Constituição dogmática Dei Filius, Denz. 1782, destaques nossos).

Essa ideia de Deus é atestada pela razão e nos é provada pelos escritos de alguns filósofos antigos que não tiveram contato com o judaísmo, como Aristóteles. Deus pode ser conhecido pelo esforço racional humano:

A mesma Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas (Ibidem, cap. 2, cf. Denz. 1785 em 1870, destaques nossos).

As citações, tanto da Escritura como do Magistério, que se darão aqui servem apenas como ilustração e confirmação de que o Deus católico é o mesmo Deus que a razão imperativamente adere.

Deus: natureza pessoal

Deus é espírito, ou seja, a natureza divina existe sem dependência da matéria (cf. A reencarnação é racional?, item 2 e 3). A matéria, necessariamente, corrompe-se, o que é inconcebível para a natureza do Ser necessário. Isto atesta a Escritura: “Deus é espírito” (Jo 4,24). Toda natureza espiritual é dotada de dois modos de ação: intelecto e a volição.

Analogamente, pela investigação racional do ser humano, chaga-se ao conceito de pessoa: ser cuja natureza é dotada de inteligência e vontade, ou seja, um ser com natureza espiritual. Boécio, grande filósofo romano do séc. VI, assim define:

A pessoa é uma substância individual de natureza racional (De duabus naturis, c. 3).

Substância é o ente capaz de existir em si mesmo. Neste sentido, opõe-se a acidente (existe em outro). Exemplo: parede (substância) branca (acidente).

Pode-se entender indivíduo como o ser (espécie) no qual se realiza uma natureza (gênero). Por exemplo: dentre a natureza humana, João é um indivíduo no qual a humanidade se manifesta.

Sendo Deus, por excelência, uma natureza espiritual, conclui-se que Ele é um ser pessoal.

O teísmo, que sugere ser Deus um princípio irracional (infelizmente muito em voga por causa do pensamento liberal), repugna totalmente a reta razão.

Deus: atributos

A divindade, sendo uma natureza, possui atributos (ou propriedades essenciais), que são características inerentes ao ser. Em Deus, há duas espécies de atributos: entitativos e operativos.

Atributos entitativos

Os atributos entitativos são os relacionados ao ser em si mesmo, por isso também chamado de metafísicos. Deus é o Ser que existe por natureza, a esse atributo os filósofos chamam de asseidade. Por isso, todos os atributos entitativos são, na verdade, expressão da asseidade, pois todos os atributos de Deus não se diferem dEle (como à frente ficará mais claro). Deus é único e, por essa razão, simples; como é ato puro é infinito e imutável; não suscetível à mudança, é, portanto, eterno sendo fonte da existência de tudo, por isso, imenso.

1. Unidade ⇒ atributo pelo qual o Ser divino é único: Deus é único.

A relação da unidade com a asseidade é que a natureza que existe por si, necessariamente é única, pois do contrário seria excessiva.

Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (Dt 6,4).

Eis o que diz o Senhor, o rei de Israel, seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro e o último, não há outro Deus afora Eu (Is 44,6).

Fazei valer vossos argumentos, consultai-vos uns aos outros: quem havia predito o que se passa, quem o tinha anunciado desde longa data? Não fui eu, o Senhor, e nenhum outro? Não há Deus fora de Mim (Is 45,21).

2. Simplicidade ⇒ atributo pelo qual o Ser divino não é composto por partes, ou seja, na divindade não há composição entre matéria e forma, ato e potência: Deus é simples (espírito).

A relação da simplicidade com a asseidade é que a natureza que existe por si, não pode se compor, ou seja, precisar de algo fora de si para se completar.

Ninguém jamais viu Deus. O Filho Único, que está no seio do Pai, foi quem O revelou (Jo 1,18).

Deus é espírito (Jo 4,24).

3. Infinidade ⇒ atributo pelo qual o Ser divino possui todas as perfeições em sumo e ilimitado grau: Deus é infinito.

A relação da infinidade com a asseidade é que a natureza que existe por si, por ser simples, tem, em grau máximo, não só para si, mas como fonte, todas as perfeições. É tão próprio que Deus é a própria perfeição: Deus é a bondade (e fonte de bondade), a beleza (e fonte de beleza), a santidade (e fonte de santidade) etc.

Só Deus é bom (Mt 19,17).

Deus é grande demais para que o possamos conhecer (Jó 36,26).

Toda dádiva boa e todo dom perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes (Tg 1,17).

4. Imutabilidade ⇒ atributo pelo qual o Ser divino, por ser perfeito, não está sujeito a mudanças de nenhuma espécie: Deus é imutável. Mudar é passar de algo que poderia ser (potência) para sê-lo de fato (ato): um ser muda porque falta em si determinada perfeição.

A relação da imutabilidade com asseidade é que a natureza que existe por si, tem a posse do ser e por isso não pode mudar, pois sugeriria ter algo faltante em si.

Porque EU SOU o Senhor e não mudo (Ml 3,6).

Toda dádiva boa e todo dom perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem mesmo aparência de instabilidade (Tg 1,17).

5. Eternidade ⇒ atributo pelo qual o Ser divino está fora do tempo, imune às vicissitudes do século: Deus é eterno. O tempo é o devir, a sucessão da potência para o ato, o movimento (no sentido metafísico). Deus não teve princípio e nem terá fim, para Ele é o eterno presente.

A relação da eternidade com asseidade é que a natureza que existe por si, não pode estar no tempo, na sucessão dos movimentos, pois seria o mesmo que mudar.

O número de Seus anos é incalculável (Jó 36,26).

Antes que se formassem as montanhas, a terra e o universo, desde toda a eternidade Vós sois Deus (…) porque mil anos, diante de Vós, são como o dia de ontem que já passou, como uma só vigília da noite (Sl 89,2.4).

EU SOU o primeiro e o último (Is 44,6).

EU SOU o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Começo e o Fim (Ap 22,13).

6. Imensidade (ou ubiquidade) ⇒ atributo pelo qual o Ser divino está em todos os lugares, ou melhor, tudo está nele: Deus é onipresente (ou ubíquo).

A relação da imensidade com asseidade é que a natureza que existe por si, por ser causa das outras, está na presença dos contingentes, como dito acima.

Senhor, realizastes em nós todas as nossos obras (Is 26,12).

Mas, será verdade que Deus habite sobre a terra? Se o céu e os céus dos céus não Vos podem conter quanto menos esta casa que edifiquei! (I Rs 8,27).

A passagem mais clara sobre a ubiquidade de Deus e da possibilidade de se chegar a Deus pela razão (contra os modernistas) é o famoso discurso de São Paulo no areópago de Atenas:

Ele não está longe de cada um de nós. Porque é nEle que temos a vida, o movimento e o ser, como até alguns dos vossos poetas disseram (At 17,27s).

Os poetas a que o Doutor dos Gentios alude são os filósofos gregos que acertadamente chegaram a algum conhecimento sobre Deus.

*

Este atributo divino pode ser facilmente confundido com o errado argumento panteísta, por isso, merece que se detenha um pouco mais em sua explanação.

Deus é onipresente, mas não como parte da essência (panteísmo) ou por acidente (admissão de potência passiva em Deus). Afirma Santo Tomás que Deus está na criação “da mesma forma que o agente está presente naquilo que aciona” (cf. Suma Teológica I, q. 8, a. 1). Embora presente, não está contido em nada.

Deus é imenso porque é a causa das criaturas: na criação e na conservação e governo (Providência divina):

Deus, de modo comum, está em todas as coisas pela presença, poder e substância; contudo, de modo familiar, diz-se que está em certos seres pela graça (Suma Teológica I, q. 8, a. 3, s.c.).

Pela presença: como as coisas diante de nós nos estão presentes, sendo abarcadas pelo olhar, não obstante não estejamos nos objetos observados. Assim Deus está nas coisas por tudo estar sob sua presença (seu olhar).

Pelo poder: como um governante, cujo poder alcança tudo sob sua autoridade. Assim Deus está nas coisas pelo seu poder.

Pela essência: pois tudo dEle depende para ser, mesmo as criaturas que foram geradas de outras já existentes. Assim Deus está nas coisas, porque são contingentes e só Ele É.

Em resumo:

Deus está em todas as coisas pela presença, porque tudo Lhe está descoberto e como nu diante dos olhos; pelo poder, porque tudo Lhe está sujeito; e pela essência, porque de tudo Ele é a causa.

Há também a presença pela graça, que é um aperfeiçoamento da natureza racional, fazendo com que Deus habite na alma com agente (assunto a ser tratado da doutrina dos Sacramentos).

Atributos operativos

Os atributos operativos são relativos à ação da divindade. É, pois, a maneira que Deus age. São eles: inteligência (ou intelecto) e vontade (ou volição).

Essa ação divina pode ser interna, de Si para Si (ad intra) ou ser externa, de Si para outrem (ad extra). Esta diz respeito à criação do mundo e aquela, à processão divina.

1. Inteligênciafaculdade espiritual pela qual se conhece algo, material ou imaterial, de maneira abstrata (ou seja, na essência).

Deus é infinito em inteligência, ou seja, Deus é onisciente (cf. Sl 138).

A relação entre onisciência e asseidade é que a natureza que existe por si, por ser causa das outras, tem que necessariamente conhecer todas as coisas que sustenta na existência.

Nenhuma criatura Lhe é invisível. Tudo é nu e descoberto aos olhos dAquele a Quem havemos de prestar contas (Hb 4,13).

A inteligência em Deus é perfeita (conhece na essência inteira do ser), mediata (conhece em Si mesmo todas as coisas que criou), completa (não precisa conhecer as várias partes, para saber o todo), compreensiva (conhece clara e conscientemente, sem confusão), imutável e universal (conhece tudo o que existe).

Seu conhecimento abarca também as escolhas livres das criaturas e não lhes tolhe a liberdade.

Igualmente, segundos os molinistas e escotistas, Deus conhece até as escolhas e fatos condicionais, que jamais ocorrerão (cf. Sl 138).

2. Vontadefaculdade espiritual pela qual se quer algo conhecido pela inteligência e, portanto, segue o intelecto. É a faculdade que tende para o bem [imaterial] percebido pela inteligência.

A vontade de Deus pode tudo o que quer (exceto o absurdo), ou seja, Deus é onipotente.

Porque a Deus nenhuma coisa é impossível (Lc 1,37).

Senhor, é-Vos possível empregar vosso poder, quando quiserdes (Sb 12,18).

A vontade em Deus é simples (porque independente), livre (“O Senhor faz tudo o que Lhe apraz, no céu e na terra, no mar e nas profundezas das águas” – Sl 134,6), imutável, eterna, onipotente, justa e boa. A vontade de Deus é boa de diversas formas e, segundo elas, toma diferentes nomes:

  • caridade – quando o afeto de sua vontade o inclina a procurar nosso bem;
  • liberalidade – quando se manifesta por obras e benefícios;
  • graça – quando nos dá auxílios sobrenaturais;
  • ternura ou compaixão – quando se compadece das nossas necessidades;
  • paciência – quando tolera os maus;
  • mansidão – quando demora em castigar os maus;
  • misericórdia ou clemência – quando perdoa os nossos pecados.

Deus: EU SOU

Aqui, terminamos de expor o que a boa Filosofia poderia nos ensinar sobre a natureza divina em si mesma. Agora passaremos que a concepção de Deus da razão retamente guiada em nada repugna o Deus católico.

EU SOU é o nome terrível de Deus revelado a Moisés, como atesta as Escrituras:

Deus respondeu a Moisés: ‘EU SOU AQUELE QUE É’. E ajuntou: ‘Eis como responderás aos israelitas: [Aquele que Se chama] EU SOU envia-me junto de vós’ (Ex 3,14).

Deus transcende o mundo e a história. Ele É porque nEle “não há mudança, nem mesmo aparência de instabilidade” (Tg 1, 17). Ele É desde sempre e para sempre; e assim, permanece sempre fiel a si mesmo e às suas promessas.

A manifestação do nome inefável, «Eu Sou», encerra, portanto, a verdade que só Deus tem a existência como posse, ou seja, propriedade da natureza. É nesse sentido que a Tradição da Igreja compreende o nome divino: Deus é a plenitude do Ser e de toda a perfeição. Sem princípio nem fim. Enquanto todas as criaturas dEle receberam todo o ser e o ter, só Ele é o Seu próprio Ser, e Ele é por Si mesmo tudo o que Ele é.

Tomaz Pèguez escreveu:

Deus existe por exigência de Sua natureza (cf. A Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino em forma de catecismo).

Tudo o que essas passagens afirmam, pode ser resumida naquilo que os filósofos chamam de asseidade (como visto acima).

Dessas passagens da Revelação, tanto da Escritura como da Tradição (como explicadas pela Igreja), pode-se concluir que o Deus revelado no Antigo Testamento e objeto de Fé da Igreja é o mesmo Deus que a razão denuncia como o Ser necessário.

Esse é um argumento convincente de que a Escritura é realmente uma obra revelada, devido ao conceito novo de divindade que propõe, completamente inédito até então, além de concordar com a Filosofia, sem uma influência mútua.

Este é, pois, o Deus verdadeiro que em nada repugna a razão criada; é este o Deus que a Santa Igreja professa como razão de sua Fé.

2 respostas em “I ARTIGO: DEUS (PARTE 2 DE 4)

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