Um argumento bastante utilizado pelos que defendem a ortodoxia da reforma litúrgica de Paulo VI, é que a Igreja não pode errar ao legislar tampouco ao impor um rito. É possível que a Igreja estabeleça um rito ruim ou herético? A resposta, como a maioria das coisas reais, não é tão simplista como querem alguns.
Em primeiro lugar, há de se fazer a ressalva que não existe apenas o certo (dogma) e o errado (heresia). As doutrinas não são classificadas só como verdadeiras ou falsas; as censuras, igualmente, possuem várias classes. Passemos, pois, às classificações das verdades e das censuras.
As espécies de verdades
As certezas das verdades são quatro:
- De Fé divina: são as verdades formalmente reveladas (atestadas nas fontes primárias da Fé). Por exemplo a unidade de Deus.
- De Fé divina e católica: são as verdades cujo conteúdo é proposto pela Igreja como divinamente revelado. Por exemplo a divindade de Cristo.
- Verdade católica ou de Fé definida: são as verdades propostas pelo Magistério infalível, explicitados por dedução, através do método racional teológico, ou pelo conhecimento resultante da lumen fidei das verdades de Fé divina (cf. S.T. II-II, q 1-4). Por exemplo o número dos Sacramentos (que são sete) ou a Assunção de Nossa Senhora.
- Verdades conexas: verdades relacionadas com as doutrinas de Fé que, embora não estejam contidas formalmente na Revelação, estão virtualmente presentes pela ligação com ela.
- próximas à fé: quando são consideradas contidas na Revelação unanimemente pela Igreja, mas não definidas expressamente (o que a tornaria de Fé definida). Por exemplo a impecabilidade de Nossa Senhora;
- teologicamente certa: quando a doutrina é deduzida de uma verdade revelada, cuja negação seria rejeitar um dogma [1]. Por exemplo o limbo infantil.
- Hipótese teológica: é apenas uma teoria baseada na Verdade revelada, mas não ensinada pelo Magistério (ao menos o infalível). Por exemplo a essência física do Sacrifício da Missa ser a dupla consagração.
As espécies de censura
Esclarecendo a vasta possibilidade de verdades, é mister afirmar ser um contrassenso imenso não admitir o mesmo em relação às censuras. Ao que parece, elas são até mais subclassificadas, pois podem ser em relação ao conteúdo (opõe-se a cada uma das certezas), forma e efeito.
Quanto ao conteúdo
- Heresia: afirmação que se opõe abertamente a uma verdade de Fé. Desse modo opõe-se à certeza 1 (de Fé divina e de Fé divina e católica) e à 2 (de Fé definida). Podemos citar como exemplos o maniqueísmo e o protestantismo (que afirma haver apenas três Sacramentos).
- Erro na Fé: afirmação que se opõe a uma grave conclusão teológica derivada de uma verdade revelada ou de um princípio da razão. Desse modo opõe-se à certeza 3 (Verdades conexas). Por exemplo afirmar que Nossa Senhora ao longo de sua vida pecou.
- Temerária: afirmação que se opõe a uma simples sentença comum entre os teólogos. Desse modo opõe-se à certeza 4 (Hipótese teológica). Como dizer que a essência física da Missa é a comunhão dos fiéis.
Quanto à forma e aos efeitos
Neste quesito, analisa-se a maneira que foi escrita a proposição. Assim, pode ser equívoca, suspeita ou duvidosa.
Então, embora não contradiga nenhuma Verdade, o conteúdo é proposto de modo a se ter várias interpretações, de acordo com as classificações do Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei (cf. Denz. 1501ss).
Os efeitos dizem-se em relação ao que pode ser produzido entre os fiéis pelas circunstâncias particulares de tempo e de lugar. Nesse sentido, pode ser perversão, escândalo ou perigo.
Aplicação na Missa
Tento em vista todas essas distinções, que tem por escopo não apenas instruir o leitor, mas principalmente mostrar que a realidade é um tanto mais complexa que a visão binária, podemos aplicar essas questões ao problema do novo rito da Missa.
O novo rito da Missa não pode ser herético, pois que contradiria uma verdade de Fé definida pelo Concílio de Trento, assim como outros pronunciamento dos Papas, como Pio VI. Como já foi visto, não só a heresia combate contra a Fé verdadeira e, por isso, não é apenas a heresia que deve ser evitada.
É de conhecimento de todos os fiéis o terrível problema litúrgico que a Igreja, por causa do novo rito, passa. Uma Missa feita de forma imodesta e desrespeitosa tem que ser rechaçada imediatamente por qualquer fiel, pois assistir a uma Missa assim celebrada é ser conivente, ou seja, cúmplice dos erros perpetrados na celebração. Mais grave se diga de comungar numa Missa nessas circunstâncias.
Além da Missa mal celebrada, ele pode ocorrer de acordo com as rubricas, mas com problemas em relação à ortodoxia do celebrante. Numa Missa desse modo, existe a obrigação de abstenção da celebração, ensina Santo Tomás.
Essa diretriz independe do rito no qual é celebrada a Missa. Por isso, nenhum católico deve assistir a uma Missa de um cismático ou herege, independente da validade da celebração ou de quão venerável ou antigo é o rito.
E sendo a consagração da Eucaristia um ato consequente ao poder conferido pela Ordem, os separados da Igreja pela heresia e pelo cisma ou pela excomunhão, podem por certo consagrar. A Eucaristia, consagrada por eles, contém verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Cristo; mas, assim procedendo, não procedem bem e pecam. Por isso não colhem o fruto do Sacrifício, que é um sacrifício espiritual (S.T., III, q. 82, a. 7, resp., destaques nossos).
E ainda:
Ao rezar as orações da Missa, o sacerdote o faz sem dúvida em nome da Igreja, de cuja unidade faz parte. Mas, na consagração do Sacramento age em nome de Cristo, cujas vezes faz pelo poder que lhe foi conferido na sua ordenação. Por onde, o sacerdote separado da unidade da Igreja que celebrar a Missa, por não ter perdido o poder da Ordem, consagra verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Cristo; mas por estar separado da unidade da Igreja, as suas orações não têm eficácia (S.T., III, q. 82, a. 7, sol. 3, destaques nossos).
Por fim, pode-se afirmar que não há problema algum numa Missa bem celebrada por um padre ortodoxo. Contra isso, bastem os inúmeros textos mostrando os problemas do novo rito da Missa: seja a inferioridade ritual (outro texto aqui) [2], seja a proximidade com o culto protestante [3] e outros problemas que induzem a ideias contrárias à ortodoxia da Fé (em breve pretendemos publicar um outro texto a respeito) [4].
Doutrinas também estranhas à Fé podem ser concluídas da assistência ao rito novo. Para citar algumas, de inúmeras possíveis: o novo Missal prevê uma Missa para crianças mortas sem Batismo, pede que os judeus permaneçam na crença atual e chama a Missa dominical de grande festa da Ressurreição (em breve pretendemos publicar um outro texto a respeito) [5].
Fazer Missa para crianças mortas sem Batismo é negar o limbo, cuja existência, a depender do teólogo, é classificada como teologicamente certa. Sua negação seria erro na Fé.
Rezar para que os judeus mantenham-se fiéis ao Antigo Testamento, ab-rogado pelo véu rasgado do templo (cf. Mc 15,38), é incentivar ao indiferentismo.
Em resumo, embora não seja um rito herético, está tão eivado de imprecisões que a conclusão sobre sua não assistência é ululante.
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Notas
[1] Esse “tipo” não é dogma, não por ser um dado duvidoso, mas por não ser revelado. A diferença não é de forma, mas de matéria. Dogmas são assertivas sobre o dado revelado. Verdades teologicamente certas são assertivas sobre dados conexos com a Revelação. Negar uma verdade teologicamente certa, entretanto, equivale a negar, indiretamente a verdade de Fé (dogma) com ela conexa.
[2] Contrariando a máxima de que se deve dar o melhor para Deus. Outrossim, a inferioridade ritual da nova Missa faz-se esquecer de que o rito em si mesmo é simbólico. Ora, se algo que é simbólico por si, perde o simbolismo, de que serve?
[3] Aqui já entramos nas cesuras elencadas acima. Se o rito novo não chega a contradizer um dogma — ao menos não diretamente — o que impede que o classifique como herético, o mesmo não se pode dizer quanto ao modo que ele apresenta as Verdades reveladas no tocante à Eucaristia e à eficácia da Missa como um verdadeiro sacrifício que atualiza o Sacrifício da Cruz. Pode, desse modo, ser classificado como equívoco e duvidoso.
[4] O que já classifica o novo rito como escandaloso, visto os problemas ocorridos da sua publicação. Pelas circunstâncias é também perigoso.
[5] O que está de acordo com a definição de Missa usada pelo novo Missal:
A Ceia do Senhor, também chamada Missa, é a assembleia ou reunião do povo de Deus sob a presidência do sacerdote a fim de celebrar o memorial do Senhor (Instrução Geral ao Missal Romano, §7, 1969, destaques nossos).
Toda a nova Misa foi concebida sobre essa premissa que, se pensarmos não se tratar de uma heresia, ao menos é equívoca, duvidosa e perigosa.