V ARTIGO: DESCIDA AOS INFERNOS E RESSURREIÇÃO

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A morte em Cristo foi, como em nós, a separação do Seu Corpo de Sua Alma. Como Sua Pessoa, que é divina, realmente assumiu a natureza humana, Ela sempre esteve unida substancialmente ao Seu Corpo e à Sua Alma, mesmo na morte. Ou seja, a divindade estava substancialmente presente junto ao Corpo no sepulcro e à Alma no inferno.

Então diz o Símbolo: “Desceu aos infernos; ao terceiro dia ressurgiu dos mortos”.

Inferno, em sentido largo, significa lugares inferiores, ou seja, qualquer lugar (ou realidade) que, depois da morte, não seja o Céu; são eles: o inferno purgante (ou limbo purgante ou simplesmente purgatório), o inferno infantil (ou limbo das crianças), o inferno dos Patriarcas (ou limbo dos Patriarcas ou mansão dos mortos) e o inferno dos réprobos (ou dos condenados ou inferno). A fim de evitar confusão com o inferno propriamente dito, usaremos “limbo” para designar os lugares dos infernos.

A “modalidade” de inferno ao qual se refere o presente artigo do Credo é o limbo dos Patriarcas (é conhecido modernamente por “mansão dos mortos”). As Escrituras o dão como existente e o chamam, entre outros termos, de “seio de Abraão”:

E estando ele [rico epulão] nos tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio (Lc 16,23).

Cabe ressaltar que em nada diminui a dignidade divina de Cristo o fato de ter Ele descido ao limbo dos Patriarcas. Descida que se deu estando Sua Alma unida à Pessoa do Verbo para lá Ele pessoalmente anunciar a salvação para os justos (Adão, Eva, Abel, Set, Abraão, Isaac, Jacó, Davi…), resgatá-los e introduzi-los no Céu:

Penetrarei em todas as profundezas da terra, visitarei todos aqueles que dormem, e alumiarei todos os que confiam no Senhor (Eclo 24,45).

Serão amontoados como prisioneiros num calabouço, serão encerrados numa prisão, e, depois de muitos dias, serão visitados (Is 24,22).

As portas dos Céus nos foram abertas mediante Sacrifício vicário de Cristo, como foi visto. Deste modo, convinha que Ele, o novo Adão e o Salvador da humanidade toda, fosse o primeiro (enquanto homem) a entrar no Céu e abrir-lhe as portas:

É neste mesmo espírito que Ele foi pregar aos espíritos que eram detidos no cárcere, àqueles que outrora, nos dias de Noé, tinham sido rebeldes (I Pd 3,19).

Eles darão conta Àquele que está pronto para julgar os vivos e os mortos; pois para isto foi o Evangelho pregado também aos mortos; para que, embora sejam condenados em sua humanidade de carne, vivam segundo Deus quanto ao espírito (IPd 4,56).

Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda a criação. Ele é a Cabeça do corpo, da Igreja. Ele é o Princípio, o primogênito dentre os mortos e por isso tem o primeiro lugar em todas as coisas (Cl 1,15.18).

Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça (Ap 5,9).

Ao limbo dos Patriarcas iam os justos do antigo Testamento; eles não podiam ir para o Céu, pois as suas portas estavam fechadas por causa do pecado. Depois do resgate por Cristo, o limbo dos Patriarcas foi fechado, como ensina o Papa São Gregório Magno: “O nosso Criador e Redentor, penetrando os claustros do inferno, de lá tirou as almas dos eleitos e não nos permite mais ir para esse lugar, donde livrou a outros com a sua descida”.

Ao purgatório vão aqueles que morrem em justiça (sem pecado), mas ainda têm dívidas a pagar por causa dos pecados já perdoados: “Ora, quando fores com o teu adversário ao magistrado, faze o possível para entrar em acordo com ele pelo caminho, a fim de que ele te não arraste ao juiz, e o juiz te entregue ao executor, e o executor te ponha na prisão. Digo-te: não sairás dali, até pagares o último centavo” (Lc 12,58s) [1].

Ao limbo das crianças vão aqueles que, sem atingir a razão (seja por idade ou enfermidade), morrem sem o Batismo [2]; esses, entretanto, não sofrem. É um lugar de felicidade natural:

O Papa [Pio VI] declara falsa, temerária, injuriosa às escolas católicas, a proposição segundo a qual deve ser rejeitado como uma fábula pelagiana o lugar dos infernos, chamado vulgarmente limbo das crianças, no qual as almas daqueles que morrem somente com o pecado original são punidas com a pena de dano sem a pena do fogo (Condenação do Sínodo de Pistoia, Denz. 1526).

Ao inferno dos réprobos ou condenados vão aqueles que morrem em pecado, como será falado no artigo XII (ver nota 2).

*

Cristo passou três dias incompletos sepultado ─ um dia e duas noites:

O tempo mesmo que Cristo permaneceu no sepulcro representa o efeito da Sua Morte. Pois, como dissemos pela Morte de Cristo fomos libertos de uma dupla morte: a da alma e a do corpo. O que é significado pelas duas noites, durante as quais Cristo permaneceu no sepulcro. A Sua morte, porém, não causada pelo pecado, mas motivada pela caridade, não é comparável à noite, mas ao dia. Por isso é simbolizada pelo dia inteiro em que esteve no sepulcro. Por onde, era conveniente que Cristo permanecesse no sepulcro um dia e duas noites (S.T., III, q. 51, a. 4, resp., destaques nossos).

O Catecismo Romano, seguindo Santo Tomás (cf. S.T., III, q. 53, a. 2, resp.), ensina que esse tempo tem por fim provar sua humanidade e divindade: Ele não passou menos, para que se não houvesse dúvidas quanto à realidade de Sua morte; não mais para provar que é Deus e, portanto, Seus discípulos não desesperassem e perdessem a Fé.

Após isso, ressuscitou glorioso. A ressurreição é o maior milagre de Nosso Senhor. Isso atestam as Escrituras — “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa Fé” (I Cor 15,14) [3] — e igualmente a Tradição, pela própria Liturgia que põe todo o ano litúrgico em função da Páscoa, chamando do Domingo da Ressurreição de “Solenidade das Solenidades”. De fato, é a prova final de Sua divindade, como diz São João Crisóstomo: “A Ressurreição nos justifica pela Fé que inspira, na Fé que justificou também Abraão, na Fé acerca da salutar Paixão, que nos libertou dos pecados” (Comentários à Carta aos Romanos).

E ainda diz Santo Agostinho:

Que muito crermos que Cristo morreu? Também os pagãos, os judeus e todos os mais o acreditam. Todos creem que Ele morreu. A Fé [característica] dos cristãos é a Ressurreição de Cristo (Comentário aos Salmos 120,4, destaques nossos).

Por fim, passemos à importância da Ressurreição do Senhor, cuja utilidade para nós o Aquinate magistralmente explana:

Era necessário que Cristo ressurgisse, por cinco razões: Primeiro para a manifestação da divina justiça, a qual compete exaltar aos que se humilham por amor de Deus (…) Segundo, para ilustração da nossa Fé. Pois, a Sua ressurreição confirmou a nossa Fé na divindade de Cristo (…) Terceiro, para sustentar a nossa esperança. Pois, vendo Cristo ressurgir, Ele que é nossa cabeça, esperamos que também havemos de ressurgir (…) Quarto, para nos dar um modelo pelo qual possamos regular a nossa vida (…) Quinto, para complemento da nossa salvação. Pois, assim como sofreu tantos males e morreu, para dos males nos livrar, assim também foi glorificado ressurgindo, para nos dar a posse do bem, que perdêramos em consequência de nossa prevaricação (S.T., III, q. 53, a. 1, resp., destaques nossos).

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Notas

[1] A existência do purgatório é dogma de Fé e se afasta da comunhão com a Igreja quem nele não crê. A Escritura atesta já no Antigo Testamento:

Em seguida, fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas, para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles (…) eis por que ele pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas (II Mac 12,43s.46).

Também no Novo Testamento vemos esta doutrina, não apenas no Evangelho:

O Senhor conceda sua misericórdia à casa de Onesíforo, que muitas vezes me reconfortou e não se envergonhou das minhas cadeias! Pelo contrário, quando veio a Roma, procurou-me com solicitude e me encontrou. O Senhor lhe conceda a graça de obter misericórdia junto do Senhor naquele dia (II Tm 1,16ss).

Ora, se não existe purgatório, qual a necessidade de se rezar por alguém que já morreu? Que Onesíforo morreu é possível atestar aqui “Saúda Prisca e Áquila, e a família de Onesíforo” (II Tm 4,19) pois não existe outro motivo para saudar a família e não o chefe nominalmente.

Assim como a Tradição:

Aquele que é a Verdade, Jesus, afirma que existe antes do juízo um fogo purificador, pois Ele disse: ‘Se alguém blasfemar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado nem neste século nem no século futuro’ (Mt 12,32). Vemos então que certas faltas podem ser perdoadas neste mundo (neste século), e outras, num mundo (ou século) futuro. O pecado contra o Espírito não será perdoado neste mundo e nem no mundo futuro. Mostra o Senhor Jesus, então, que há pecados que serão perdoados após a morte (Papa São Gregório Magno, Diálogos 4,39).

E o confirma o Magistério:

Porque se eles morrem na caridade verdadeiramente arrependidos antes que eles tenham feito satisfação através de dignos frutos de penitência pelos pecados cometidos e omitidos, suas almas são purificadas depois da morte por punições purgatórias ou depurantes (II Concílio de Lião, em 1274, Denz. 464).

As punições são semelhantes ao inferno dos condenados, pois são impedidos de ver a Deus e purificados pelo sofrimento através do fogo, como atesta o Apóstolo:

Se a construção resistir, o construtor receberá a recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém, passando de alguma maneira através do fogo (I Cor 3,14s).

[2] O pecado pode ser dividido em original e atual. O pecado original foi tratado anteriormente. O pecado atual é um ato consciente e livre do indivíduo racional. O castigo deste é o sofrimento eterno no inferno dos réprobos, chamado pena dos sentidos: “Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. E estes irão para o castigo eterno” (Mt 25,46). O castigo daquele é a privação da visão de Deus, mas não implica sofrimento, uma vez que não é um ato pessoal, chamado pena de dano: “Todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23).

[3] Uma interpretação totalmente desconexa com o sentir bimilenar da Igreja gerou a novidade da estranha doutrina do mistério pascal da Ressurreição. Em breve, como já prometemos, publicaremos um texto sobre esse assunto.

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