Texto original aqui.
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Ataque à Tradição Constitutiva
Por que é sempre a Liturgia o alvo dos ataques mais violentos da parte dos que estão determinados a refazer a Igreja Católica à imagem do modernismo? O que há na Sagrada Liturgia que tanto ameaça os progressistas a ponto de sofrer constantes e ininterruptos remendos de «reformadores» liberais decididos a apagar todos os vestígios da Tradição da Igreja? Naturalmente, o Santo Sacrifício da Missa é o mais perfeito ato de adoração e, como tal, é particularmente odiado pelo Demônio, que se volta contra a Missa com ódio especial. Esta é obviamente a razão sobrenatural por trás dos ataques progressistas. Mas há também uma razão teológica muito prática e conjugada ao entendimento da Igreja sobre Tradição, Revelação Divina e sua própria natureza.
A teologia é o estudo da Revelação Divina. A Revelação provém de duas fontes: a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição. A Escritura são aquelas partes da Revelação escritas sob a inspiração do Espírito Santo. A Sagrada Tradição, por sua vez, são aquelas partes da Revelação que não foram escritas. Observe que, enquanto as escolas teológicas modernas tendem a definir tradição simplesmente como um «modo de transmissão», a Sagrada Tradição deve ser considerada de uma maneira composta, tanto em seu objeto como em sua ação. Noutras palavras, tanto o que é transmitido quanto como é transmitido. Devemos compreender a Tradição tanto em termos de conteúdo quanto de modo, ao passo que os modernos tendem a enfocar a Tradição quase exclusivamente como um modo de transmissão.
Qual é exatamente o conteúdo da Tradição? Examinando a Tradição quanto ao seu teor, teólogos do passado distinguiram dois tipos de Tradição – a Constitutiva e a Declarativa. Uma Tradição Constitutiva é algo que «constitui» uma doutrina em e de si mesma; a própria Tradição é a fonte da doutrina. Isso significa que a Tradição Constitutiva são aquelas doutrinas e disciplinas não encontradas nas Escrituras. A própria Tradição «constitui» a doutrina. Tradição Declarativa, no que lhe concerne, são aquelas verdades encontradas nas Escrituras que também são encontradas na Tradição. Diz-se que «inerem» à Sagrada Tradição, mas são encontradas principalmente nas Escrituras. No caso da Tradição Declarativa, a Sagrada Tradição não é a única fonte, mas, antes, o apoio que confirma o ensinamento bíblico. Ela pode refletir o ensinamento bíblico, acrescentar-lhe algo ou meramente esclarecê-lo.
Os exemplos de Tradições Declarativas são abundantes. O sacramento da Eucaristia é claramente ensinado nos Evangelhos e em I Coríntios e mencionado também em muitas tradições autorizadas. A Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo é ensinada em todo o Novo Testamento e também aparece nos Símbolos dos fiéis, isto é, nos Credos. Tradição Declarativa é aquela que aparece na Escritura e na Tradição.
Mas quais são os exemplos de Tradição Constitutiva, aquelas tradições não escritas que se constituem elas mesmas doutrinas sem referência na Escritura? Poderíamos aqui citar a Assunção da Santíssima Virgem Maria, o jejum quaresmal, o celibato clerical, a prática da concessão de indulgências e muitos outros aspectos da nossa Tradição que não estão explicitados nas Escrituras. O núcleo mais fundamental da Tradição Constitutiva, contudo, é a herança litúrgica da Igreja – os ritos sagrados que envolvem a celebração dos Sacramentos. Esses são o centro da Tradição Constitutiva.
A teologia católica tradicional assumiu como natural que tradições fossem tanto constitutivas quanto declarativas. Esse fato aparece sem constestação no clássico de 1928, de Mons. George Agius, Tradition and the Church. Por outro lado, os protestantes têm tradicionalmente negado a existência de qualquer tipo de Tradição Constitutiva autorizada, já que uma tal admissão exigiria a existência de uma autoridade fora da Escritura.
Com a ascensão do novo ecumenismo e da escola da nouvelle theologie, contudo, teólogos católicos também começaram a discutir se haveria realmente uma tradição constitutiva. Como se pode inferir, isso está estreitamente relacionado com o debate paralelo moderno sobre a suficiência das Sagradas Escrituras. Alguns afirmam que as Escrituras são materialmente suficientes como fonte da Revelação; isto é, cada ensinamento da Fé está nas Escrituras de algum modo, seja explícita ou implicitamente. Outros (principalmente progressistas) sustentam que a Escritura é formalmente suficiente; isto é, cada ensinamento da Fé se encontra explicitamente nas Escrituras. A propósito, eis aqui um artigo honesto [1] sobre a discussão da suficiência formal versus a material.
Esse debate entre a suficiência formal e a material está associado àquele sobre constitutiva versus declarativa. Obviamente, se a Escritura for materialmente suficiente, então há a possibilidade de existir uma Tradição Constitutiva real, mas não se ela for formalmente suficiente. Os mesmos teólogos progressistas que veem a Tradição meramente como um modo de transmissão e negam a existência de uma Tradição Constitutiva afirmam simultaneamente que as Escrituras são formalmente suficientes, porquanto isso enfraquece a existência da Tradição Constitutiva por outro ângulo.
Por que os progressistas se unem contra a Tradição Constitutiva? Precisamente porque a tradição constitutiva contém todos aqueles elementos do catolicismo mais ofensivos aos liberais. Mas essas Tradições não são pequenas unidades isoladas, esquecidas por todos, só esperando que os liberais as descartem. Na verdade, elas estão vinculadas e integradas à Liturgia perene da Igreja, que constitui o centro e o baluarte da Tradição Constitutiva da Igreja. Não há nenhum meio de atingir a Tradição Constitutiva, a não ser subvertendo a Liturgia.
Daí ser a Sagrada Liturgia o foco dos ataques liberais. Os aspectos mais «ofensivos» da nossa Fé somente podem ser isolados e diminuídos quando a Liturgia for um obstáculo superado, uma vez que é ela, a Liturgia, que os «envolve», tal como o âmbar o faz com um inseto, preservando-o. O novo ecumenismo, com seus pioneiros, D. Lambert Beauduin e Pe. Yves Congar, tinha adotado o princípio de que aqueles aspectos do catolicismo mais ofensivos a cristãos não católicos deveriam ser minimizados para remover os entraves à unidade dos cristãos (veja aqui). Assim, como os aspectos mais «ofensivos» do catolicismo do ponto de vista não católico estão encapsulados na Liturgia [2], esta deve ser refeita.
Isso explica por que a Liturgia é o principal oponente dos progressistas. Ela é a incorporação da Tradição Constitutiva. A Tradição Constitutiva são aquelas verdades que não podem ser encontradas explicitamente nas Escrituras e por isso são mais ofensivas aos protestantes. Portanto, elas – e a Liturgia que as protege e incorpora – devem ser sacrificadas no altar do ecumenismo.
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Tradução: Ana Cláudia
Notas do editor
[1] Tradução aqui.
[2] Este é precisamente o teor da reforma litúrgica perpetrada por Paulo VI. Sob pretexto de uma volta à Liturgia primitiva (arqueologismo litúrgico?), na verdade tem o intuito de retirar toda nota característica de romanidade (excesso de aditivos orientais, especialmente bizantinos), elementos protestantes e modernistas. Uma crítica bem completa e fundamentada sobre a reforma do Novus Ordo pode ser lida aqui.
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