Todos os anos a CNBB consegue desvirtuar completamente o verdadeiro sentido da Quaresma com sua Campanha da Fraternidade (sic!), que esse ano é também ecumênica (sobre o ecumenismo). Um desvio que já salta a olhos vistos por seu nome! Numa tentativa de ajudar alguns sobre o verdadeiro sentido deste tempo litúrgico, publicamos o texto a seguir.
Texto originalmente aqui.
Por Roberto de Mattei.
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Penitência: clamada pelo Paraíso e odiada pelo mundo
Se há um conceito que é radicalmente estranho à mentalidade contemporânea este é o de penitência. O termo e a noção de penitência evocam uma ideia do sofrimento nos imposto por nós mesmos para expiar nossas dívidas ou as de outros, e para unir-nos aos méritos da Paixão Redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo. O mundo moderno rejeita o conceito de penitência porque está imerso no hedonismo e professa o relativismo, a negação de qualquer bem pelo qual seja digno sacrificar-se, a não ser em busca de algum prazer. Só isso pode explicar episódios como o recente ataque furioso da mídia contra as [freiras] Franciscanas da Imaculada, cujos monastérios são descritos como locais de tortura, apenas porque uma vida penitencial e austera é lá praticada. Usar o cilício ou estampar o monograma do nome de Jesus em seu peito são considerados [gestos] bárbaros, enquanto que a prática do sadomasoquismo ou indelevelmente tatuar seu corpo são considerados um direito inalienável do indivíduo.
Os inimigos da Igreja repetem, com todo o poder de que a mídia é capaz, as [mesmas] acusações anticlericais de sempre. O que é nova é a atitude das autoridades eclesiásticas, que, ao invés de defender as difamadas freiras, abandonam-nas – dando qualquer desculpa – à perseguição da mídia. Essas desculpas têm sua origem na incompatibilidade existente entre as regras com as quais essas religiosas persistem em sujeitarem-se e os novos padrões impostos pelo “Catolicismo adulto”.
O espírito da penitência tem sido parte da Igreja Católica desde o seu primórdio, como as figuras de São João Batista e de Santa Maria Madalena nos rememoram, entretanto, hoje mesmo para muitos clérigos qualquer referência às antigas práticas ascéticas é considerada intolerável. E, no entanto, não há doutrina mais razoável que a que estabelece a necessidade da mortificação da carne. Se o corpo rebela-se contra o espírito (Gl 5, 18-25), não é, talvez, razoável e prudente castigá-lo? Nenhum homem está isento do pecado, nem mesmo os “Cristãos adultos”. Portanto, aqueles que expiam seus pecados com penitência não estariam agindo, talvez, conforme um princípio tão racional quanto salutar? A penitência mortifica oego, ela curva a natureza rebelde, ela faz reparação e expia os seus pecados assim como os de outros. Se então considerarmos as almas apaixonadas por Deus, buscando a semelhança com o Crucificado, então a penitência torna-se uma necessidade de amor. Ilustres são as páginas do De Laude flagellorum, de São Pedro Damião, o grande reformador do século XI, cujo monastério em Fonte Avelana era caracterizado pela austeridade extrema com as regras: “Eu preferia sofrer o martírio por Cristo – escreveu – não tenho tal possibilidade – mas sujeitando-me a chibatadas, pelo menos estou expressando o desejo/a vontade de minha alma ardente” (Epistola VI, 27, 416 c.).
Na história da Igreja, toda reforma veio com o intuito de curar os males do século através da austeridade e penitência. Nos séculos XVI e XVII, os Mínimos de São Francisco de Paula praticavam (e o fizeram até 1975) um voto de jejum quaresmal que impunha a eles a contínua abstinência não só de carne, mas também de ovos, leite e todos os seus derivados; os Capuchos consumiam suas refeições no chão, misturando cinzas com sua comida e deitavam em frente a porta do refeitório [para serem] pisoteados pelos religiosos que viessem por ela; em sua constituição, os frades pertencentes à Ordem de São João de Deus previam “comer no chão, beijar os pés de seus irmãos, sujeitando-se a repreensões e auto acusações públicas”. Similares são as Regras dos Barnabitas, os Escolápios, o Oratório de São Filipe Néri e os Teatinos. Não há instituo religioso, como documenta Lukas Holste, que não preveja em suas constituições a prática do Capítulo de Faltas, a disciplina persas vezes na semana, jejuns e a redução das horas de sono e descanso (Codex regularum monasticarum et canonicarum, (1759) Akademische Druck und Verlaganstalt, Graz 1958).
A essas penitências “regulares”, os religiosos mais fervorosos acrescentavam as conhecidas penitências “supererrogatórias”, deixadas a seu critério pessoal. Santo Alberto de Jerusalém, por exemplo, na Regra escrita para os Carmelitas e confirmada pelo Papa Honório III em 1226, depois de descrever o gênero de vida na Ordem e as penitências ligadas a ela, concluiu: “Se alguém fizer mais, o próprio Senhor, quando voltar, o recompensará”.
Bento XIV, Papa manso e equilibrado, encarregou a preparação do Jubileu de 1750 a dois grandes penitentes, São Leonardo de Porto Maurício e São Paulo da Cruz. Frade Diego de Florença deixou-nos um diário da missão realizada na Piazza Navona do dia 13 ao 25 de julho de 1759 por São Leonardo de Porto Maurício, quem, com uma pesada corrente envolta no pescoço e com uma coroa de espinhas em sua cabeça, chicoteava-se na frente da multidão gritando: “Penitência ou inferno” (São Leonardo de Porto Maurício, Obras completas. Diário de Frade Diego, Veneza, 1868, vol. V, p. 249). São Paulo da Cruz, ao fim de sua oração, infligia-se golpes tão violentos que muitas vezes alguns fiéis, não aguentando o espetáculo, pulavam no palco, arriscando-se a serem atingidos na tentativa de parar seu braço. (Os Processos para a Beatificação da Canonização de São Paulo da Cruz, Postulados Gerais dos Padres Passionista, I, Roma 1969, p.493).
A penitência tem sido praticada ininterruptamente por dois mil anos pelos Santos (canonizados ou não). Com suas vidas, eles contribuíram para escrever a história da Igreja; de Santa Joana Francisca de Chantal a Santa Verônica Giuliani, que gravaram o monograma de Cristo em seu seio com ferro em brasa incandescente, a Santa Teresa do Menino Jesus, que escreveu o Credo com o próprio sangue no fim de um pequeno livro sobre os Santos Evangelhos que sempre carregava próximo ao seu coração. Essa generosidade não distingue apenas as freiras contemplativas.
No século XX, dois santos diplomatas iluminaram a Cúria Romana: o Cardeal Rafael Merry del Val (1865-1930), Secretário de Estado de São Pio X e o Servo de Deus Monsenhor Giuseppe Canovai (1904-1942), representante da Santa Sé na Argentina e no Chile. O primeiro vestia um cilício cheio de pequenos ganchos de ferro debaixo de sua púrpura cardinalícia. O segundo é autor de uma oração escrita em sangue; o Cardeal Siri escreveu: “As pequenas correntes, os cilícios, as flagelações horríveis com navalha, as feridas, as cicatrizes deixadas por essas terríveis feridas não são o começo, mas o fim de um fogo interior; não a causa, mas a eloquente e manifesta explosão dele. Tratava-se da clareza com a qual a penitência em si enxerga o valor de amar a Deus em cada coisa e por ela, no lancinante sacrifício do sangue, confirmava a sinceridade de toda renúnica interior” (Memorial para a Positio de beatificação de 23 de Março 1951).
Foi na década de 1950 que as práticas ascéticas e espirituais da Igreja começaram a cair em declínio. O Padre Battista Janssens, Padre Geral da Companhia de Jesus (1946-1964), interveio mais uma vez exortando seus irmãos a retornarem ao espírito de Santo Inácio. Em 1952, ele mandou uma carta em “contínua mortificação” onde se opunha às posições danouvelle théologie, que tendiam a excluir a penitência reparadora e impetratória. Ele escreveu que jejuns, flagelação, cilício e outros sofrimentos devem permanecer escondidos dos homens, de acordo com o preceito de Cristo (Mt 6,16-18), mas devem ser ensinados e incutidos nos jovens jesuítas até o seu terceiro ano de provação (Dicionário do Instituto de Perfeição, vol. VII, col. 472). As formas de penitência podem variar através dos séculos, mas seu espírito, sempre em oposição ao mundo, não deve ser mudado.
Nossa Senhora em pessoa, em Fátima, antevendo a apostasia espiritual do século XX, chamou novamente à necessidade da penitência. Penitência não é senão a rejeição das falsas promessas do mundo, o combate contra os poderes das trevas confrontando os poderes angelicais pelo domínio das almas e a contínua mortificação da sensualidade e do orgulho, arraigados nas profundezas do nosso ser. Somente aceitando esse combate contra o mundo, o demônio e a carne (Ef 6,10-12) seremos capazes de entender o significado da visão cujo centenário celebraremos dentro de um ano. Os pastorinhos, em Fátima, viram: “Ao lado esquerdo de Nossa Senhora e um pouco mais acima, um Anjo, com uma espada de fogo na mão esquerda, a qual, ao cintilar, projetava chamas que pareciam ir incendiar o Mundo, mas logo apagavam-se com o contato do brilho que, da mão direita, Nossa Senhora expedia ao seu encontro: O Anjo, apontando com a mão direita para a Terra, com voz forte, disse: ‘Penitência! Penitência! Penitência!’”.
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Tradução: José Napoleão Godoy
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