
Nenhuma cultura surgiu ou se desenvolveu a não ser acompanhada por uma religião. A cultura é produto da religião dominante uma vez que o culto é o centro de todas as civilizações exceto da civilização moderna.
Antes de desenvolver a discussão é preciso definir quatro termos: culto, cultura, sociedade e ‘invasão vertical dos bárbaros’:
- O culto é a maneira de agradar a divindade.
- O cultus, isto é, a cultura, é sub-produto do culto.
- A sociedade é um terreno onde as ações de milhares de agentes, movidos por intenções diversas, produzem resultados diversos [1].
- “Invasão vertical dos bárbaros” [2] é um termo designado para descrever a penetração vertical na cultura ocidental. A penetração consiste no solapamento dos fundamentos e preparação para o caminho à corrupção mais fácil do ciclo cultural e, por conseguinte, da ordem social.
Os elementos usados para esta invasão surgiram no próprio ocidente (em outro artigo explicarei quais elementos são esses). Não foi uma ação planejada desde o início. A coisa toma a dimensão de “plano” bem mais tarde – provavelmente no final do século XIX. O que aconteceu no final do Império Romano, passa a acontecer agora estre nós. A diferença é que os bárbaros já estão com trajes civilizados e até fazem parte da hierarquia da Igreja.
Crenças dos antigos e as transformações sociais [3]
As reformas radicais que surgem de tempos em tempos não podem ser consequência do acaso. O motivo delas deve residir no próprio homem. A inteligência está sempre em progresso e por esse motivo nossas instituições e leis estão sujeitas às flutuações.
A história de Grécia e Roma mostra-nos as relações das idéias que circulavam e o estado social de cada povo. A religião primitiva depois de estabelecer e formar a família, instituiu uma associação maior, a cidade. Da família se originaram todas as instituições e disciplina, assim como o direito privado dos antigos. Os princípios, as regras, os costumes, em suma, tudo o que uma cidade precisa para funcionar foi retirado da religião e sendo o culto o centro de uma civilização, as regras contidas nele influenciam toda a estrutura da sociedade, define seus valores, dogmas, ideais e regras. A partir disso, essa civilização, crendo que está certa quanto a seus pensamentos sobre a divindade, busca transmiti-los a outros povos para que conheçam a “verdadeira religião”.
A civilização do ocidente medieval
Falar da civilização medieval é falar da Cristandade. Por volta do ano 1000 iniciou-se um grande movimento de construção e reconstrução de igrejas. Esse movimento desempenhou um papel fundamental no Ocidente entre os séculos X e XIV. Em primeiro lugar o estimulante econômico devido a produção de matéria-prima em grande escala, a instauração de técnicas e a criação de equipamentos. Isso movimentou a população com trabalhos e fez dos canteiros de construção o centro da primeira, e quase única, indústria medieval.
O desejo de proteger o progresso nascente gera o Sínodo de Charroux, em 989, que instaura a primeira organização destinada a fazer com que seja respeitada a paz de Deus. Certas categorias da população não combatente agora estavam sob a proteção de guerreiros. Ao longo do século XII as escolas urbanas ultrapassam as escolas monásticas. O fato ocorre devido a aglomeração de pessoas nas cidades e os filhos de pessoas nobres com a necessidade de estudar. Nasce então a escolástica. As novas instituições, as chamadas universidades são as corporações intelectuais. O estudo e o ensino tornam-se um ofício.
Durante a fase inicial da expansão econômica, a Igreja foi essencial, pois só ela tinha os recursos necessários. Ao longo de todo o período, a Igreja protege e o ajuda.
Os sínodos da alta Idade Média davam o tom da sociedade cristã e os concílios dos séculos XII e XIII também. No meio cultural, desde a antigüidade e durante o medievo, tínhamos como filosofia dominante os ensinamentos Patrísticos e a filosofia aristotélica-tomista. Hoje… bom, o que temos hoje talvez nem dê para chamar de filosofia.
Ademais, a importância do Rito Gregoriano no mundo medieval foi considerável. Com origem no Apóstolo São Pedro, primeiro Bispo de Roma, teve seu núcleo, o Canon da Missa, concluído durante o pontificado de São Gregório Magno (século VI), donde lhe vem o nome. A maneira de cultuar a Deus fez com que na sociedade medieval as pessoas tivessem claro os princípios de hierarquia, que a família possuísse valores firmes e virtuosos pois tinham o parâmetro de ideal a ser buscado. Aos poucos a família transmitiu os princípios morais, dogmas e idéias que recebeu da religião para as instituições que formavam a sociedade. A estrutura social foi então modelada.
Civilização moderna
Iniciei o artigo dizendo que “o culto é o centro de todas as civilizações exceto da civilização moderna.”. Não estou de todo errado. O verdadeiro culto, a civilização moderna não pratica, no entanto, o culto moderno, é o culto do próprio homem.
Apesar do marco para o fim da Cristandade ser a Revolução Francesa, desde a tomada de Constantinopla no século XV, as idéias que circulam na sociedade já não são mais aquelas que outrora tivemos, mas são idéias que levam ao humanismo. Começa então uma série de transformações sociais e de pensamento.
a. Transformações sociais
Os elementos que proporcionaram o solapamento da cultura ocidental levaram a vários acontecimentos que marcam a decadência da Cristandade.
A falsa idéia do Renascimento faz com que o a Idade Média seja entendida como um período de trevas, então todo o trabalho feito pela Cristandade é colocado num catafalco e em seu lugar volta o paganismo. Então surgem as idéias que formam o humanismo.
A Reforma Protestante atinge vários países e pouco depois o Iluminismo apresenta seus ideais, assim resultando no sentimento anti-clerical. Mais tarde a Revolução Francesa apresenta seu pensamento de igualdade, liberdade e fraternidade e a idéia de colocar o Estado acima da Igreja.
b. Transformações no pensamento
O período também marca o rompimento com a filosofia aristotélica-tomista. O intelecto já não deve se adequar ao objeto real, mas o objeto é que deve se adequar ao intelecto. Assim a veracidade de algo é limitado ao conhecimento da pessoa.
A mentalidade revolucionária de querer remoldar o conjunto da sociedade – senão, a natureza humana em geral – por meio da ação política e acreditando ser agente ou portador de um futuro melhor, assim estando acima de todo julgamento ganha força.
As pessoas já não querem mais ter tal ou qual ciência, mas este ou aquele porte físico para mostrar aos amigos e tentar conquistar as mulheres: valorização do corpo em detrimento da mente; já não ouvem canto gregoriano ou música clássica, mas se limitam a batidas com aspectos tribais para satisfazer e estimular as paixões. Aqui não importa a melodia, mas que ela sirva para a realização de movimentos lascivos que serão vistos: eis a valorização do tribalismo, do visual sobre o auditivo, do sensitivo sobre o intelectivo. Em suma, a caraterística principal da civilização moderna é que o homem não tem mais Deus como fim último, mas sua finalidade é dar glória a si mesmo.
Rito e aspectos doutrinários
A finalidade do rito é propor a organização de cerimônias da liturgia que simbolizem aquilo que a Igreja crê sobre os Mistérios Divinos, rendendo a Deus a adoração que Lhe é devida e, pela beleza estética, mover os fiéis ao fervor e à piedade. Para tanto, ele absorve, adapta e transcende a cultura e tradição dos povos. A característica dos grandes ritos são o seu desenvolvimento orgânico e a sua formação por grandes Padres, por exemplo, o Rito Gregoriano e o Bizantino. Quando a ordem social e a cultura de um povo entra em crise a esperança é que o povo reabsorva o que sumiu do meio social e que está somente no rito, pois sendo ele a régua da civilização, é mais difícil sofrer mudanças radicais. Mas nem sempre isso acontece.
Analisemos o caso do ocidente. A criação do Rito Gregoriano não foi a partir de costumes de uma civilização. Como vimos no tópico sobre a criação do ocidente medieval, é a própria Cristandade que molda todo o período. Os elementos para a criação do Rito Romano surgem não do “meio cultural de um povo”, mas da Cristandade que era a cultura da época por excelência. A criação foi interna, não externa. No entanto, a Cristandade desapareceu, mas o seu modo ainda subsiste no Rito de sempre. Que modo é esse? Vejamos:
- Necessidade de uma reforma da Igreja:
“É por demais absurdo e altamente injurioso dizer que se faz necessária uma certa restauração ou regeneração, para fazê-la voltar à sua primitiva incolumidade, dando-lhe novo vigor, como se fosse de crer que a Igreja é passível de defeito, ignorância ou outra qualquer das imperfeições humanas; com tudo isto pretendem os ímpios que, constituída de novo a Igreja sobre fundamentos de instituição humana, venha a dar-se o que São Cipriano tanto detestou: que a Igreja, coisa divina, se torne coisa humana” (Mirari vos, Gregório XVI). - União entre Igreja e estado:
“Mais grato não é também à religião e ao principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a Igreja e o Estado, e romper a mútua concórdia do sacerdócio e do império. Sabe-se, com efeito, que os amadores da falsa liberdade temeram ante a concórdia, que sempre produziu resultados magníficos, nas coisas sagradas e civis” (Mirari vos, Gregório XVI). - União entre Igreja e Estado e liberdade religiosa:
“E, contra a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, não duvidam em afirmar que ‘a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica, senão quando a paz pública o exija’. E com esta idéia do governo social, absolutamente falsa, não hesitam em consagrar aquela opinião errônea, em extremo perniciosa à Igreja católica e à saúde das almas, chamada por Gregório XVI, nosso Predecessor, de feliz memória., loucura , isto é, que “a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas idéias com a máxima publicidade – seja de palavra, seja por escrito, seja de outro modo qualquer -, sem que autoridade civil nem eclesiástica alguma possam reprimir em nenhuma forma” (Quanta Cura, Pio IX). - “55° A Igreja deve estar separada do Estado e o Estado da Igreja. 57º A ciência das coisas filosóficas e morais e as leis civis podem e devem ser livres da autoridade divina e eclesiástica. 76º A ab-rogação do poder temporal que possui a Sé Apostólica contribuiria muito para a felicidade e liberdade da Igreja” (Syllabus Errorum, Pio IX).
- “77º Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos. 79º É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manisfestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo” (Syllabus Errorum, Pio IX).
- “80º O Pontífice Romano pode e deve conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna” (Syllabus Errorum, Pio IX).

Figura — A submissão do rei é um exemplo da autoridade da Igreja exercida na sociedade
Por outro lado, ao analisarmos o Novus Ordo, percebemos que seu aspecto é totalmente diferente. Ele não é criado de maneira orgânica, muito menos por grandes Padres. Além disso, qualquer um que tenha ido a Missa nova encontra os princípios da Revolução Francesa, e encontra também os ideais protestantes e pagãos (para uma abordagem mais detalhada leia o Breve Exame Crítico). Há também quem diga que, na verdade, os padres que foram formados na Missa nova não transmitem o que foi ensinado pelo Pentecostes 2.0, digo, pelo Concílio Vaticano II. Pois bem, mostremos o que foi ensinado:
- “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil” (Dignitatis humanae, Concílio Vaticano II).
- “Ainda que rejeite inteiramente o ateísmo, todavia a Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem contribuir para a reta construção do mundo no qual vivem em comum. O que não é possível sem um prudente e sincero diálogo” (Gaudium et spes,Concílio Vaticano II).
- “Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja católica” (Unitatis Redintegratio, Concílio Vaticano II).
- “Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas — que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra — absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós — e nós mais do que ninguém somos cultores do homem” (Epílogo do Concílio, Paulo VI).
“Se se deseja emitir um diagnóstico global sobre este texto [da Gaudium et Spes] poder-se-ia dizer que significa (junto com os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões mundiais) uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de Antisyllabus” (Teoria dos Princípios Teológicos, 1985, Cardeal Joseph Ratzinger).
Ainda sobre questões em matéria de fé ou moral, se você quiser saber se algo é católico, diz São Vicente de Leris, basta ver “o que sempre, por todos e em todos os lugares” foi ensinado pela Igreja: “quod ubique, quod sempre, quod ab omnibus”.
Conclusão
“Onde celebras a liturgia, lá é o coração do mundo”, diz São Máximo. O Rito Gregoriano faz justiça a estás palavras, pois é celebrado de maneira a atender a Deus. Por outro lado, a conclusão que tiramos do rito de Paulo VI e do Concílio Vaticano II, sobretudo do discurso de encerramento, é que “a Igreja de Deus que se fez homem encontrou-se no Concílio com a religião do homem que se faz Deus” [4]. Enquanto a liturgia Tradicional influência a sociedade, o rito de Paulo VI em suma, se adapta as mudanças sociais. Logo, não favorece de maneira alguma na formação de uma Cristandade, mas uma vez que coloca o homem no centro, absorve e se adapta aos seus modos, ele é anti-católico. Assim, a restauração dos valores e reconstrução de uma Cristandade reside no retorno ao Rito Gregoriano e difusão de seu modo, isto é, sua cultura doutrinária, no terreno social. Só então poderemos dizer: “Bárbaros extramuros!”.
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Notas
[1] O Mínimo, Olavo de Carvalho, pág. 204. Não utilizei a definição comumente adotada: “sociedade é um conjunto de pessoas”, pois não excluo ela. Por questão de método preferi descrever o que esse conjunto forma, ou seja, um tecido social confuso quando não organizado. Isso acontece porque as idéias em circulação não formam um todo coerente, senão quando algum sistema é implantado.
[2] Termo definido pelo Mário Ferreira dos Santos em “Invasão Vertical dos Bárbaros”.
[3] A elaboração deste tópico foi graças ao livro “A Cidade Antiga”, Fustel de Coulanges.
[4] Epílogo do Concílio Vaticano II, Paulo VI.
Muito bom o artigo, parabéns!
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Espero que vocês tenham já deixado de lado o perenialista Olavo de Carvalho, haja vista ele instrumentalizar a Tradição da Santa Igreja com a finalidade esotérica. Como ele precisa manter de certa forma os elementos da Tradição, acaba que atrai fiéis para a Igreja, todavia esses desconhecem a verdadeira finalidade de Olavo.
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Nunca tomamos parte desse perenialismo, meu caro. Mencionar um autor em um artigo não significa que compactuamos com sua doutrina – que no caso da do Olavo é perniciosa -, isso se chama referência.
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