Em meio à crise por que a Igreja passa, alguns assuntos, espinhosos, é verdade, têm que ser alvo de reflexão dos fieis. Publicamos textos sobre a Missa e a reforma, sobre a validade dos Sacramentos e a situação da Tradição, incluindo alguns excessos tradicionalistas.
Outro assunto que deve ser alvo de estudo é a questão das canonizações modernas. O presente texto analisa a história, desde a criação até a abolição, de um importantíssimo ofício no processo: o cargo do advogado do diabo. Veremos como o desvelo e a noção de santidade são mudados nos tempos modernos a ponto de nos questionarmos: qual o proveito espiritual das novas canonizações? A que agenda ideológica servem?
O texto original está no Unam Sanctam Catholicam.
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A História do Advogado do Diabo
Há grandes chances de já termos ouvido alguma vez na vida a frase «advogado do diabo» para descrever o papel de uma pessoa que argumenta contra um ponto de vista ao qual é a favor pelo propósito de testar o seu argumento em falhas ou fraquezas. O advogado do diabo era, na verdade, o nome oficial do Promotor Fidei, um ofício primeiramente atestado durante o pontificado de Leão X (1513-1521) e formalmente estabelecido por Sisto V em 1587 durante a Contrarreforma. A função do Promotor Fidei era inspecionar todos os aspectos dos processos de beatificação e de canonização, assegurando que ninguém recebesse as honras da santidade temerariamente, que a forma jurídica adequada fosse observada, que toda potencial fragilidade ou objeção à canonização dos Santos foi levantada e avaliada de forma que apenas aqueles que eram verdadeiramente dignos fossem elevados à dignidade dos altares. Uma vez que o Promotor Fidei tomava um posicionamento jurídico contra a canonização de qualquer que fosse o Santo, brincava-se que ele estava tomando a parte do demônio nos processos, daí a alcunha comum de «Advogado do Diabo» (advocatus diaboli). Neste artigo, examinaremos a origem histórica, o ofício e o fundamento racional por trás do advocatus diaboli como também as consequências ocorridas com a abolição do ofício por João Paulo II em 1982.
Desenvolvimento Histórico dos Aspectos Legais da Canonização
A primeira menção de alguém cumprindo o papel de um advocatus diaboli foi durante os trabalhos preliminares em preparação para a beatificação de São Lourenço Justiniano (1381-1456). O ofício parece ter sido atribuído por Leão X, apesar de a beatificação não ter ocorrido senão em 1524 sob o Papa Clemente VII. O papel tornou-se oficial sob Sisto V em 1587 e em 1708 o advocatus diaboli (tecnicamente conhecido por Promotor Fidei) tornou-se o mais importante ofício na Congregação dos Ritos. Mas focar unicamente no estabelecimento do ofício e em seu desenvolvimento institucional nos dá apenas uma visão parcial, pois mesmo Leão X recorreu a uma tradição legal mais antiga quando convocou um adocatus diaboli no caso de São Lourenço Justiniano, e o fundamento racional com o qual os papas da era tridentina entusiasticamente adotaram o ofício está ligado com o largo desenvolvimento histórico do culto aos Santos.
No primeiro milênio da Igreja, o cultus de um Santo local era promulgado pela autoridade do Bispo da diocese em que o santo viveu ou trabalhou. Santos populares, como Agostinho de Hipona ou Isidoro de Sevilha, adquiriram devoção mesmo fora de suas dioceses e tornaram-se amplamente honrados pela Igreja universal, ainda que sem nenhum processo de canonização formal.
Por razões históricas que vão além do escopo deste ensaio, estas canonizações locais progressivamente ficaram aquém aos padrões esperados pela Igreja universal ao longo dos séculos X a XII. A partir do fim da era carolíngia, os papas começaram a exercer um papel direto nas canonizações, revisando as determinações dos bispos ou castigando-os por elevarem pessoas aos altares muito precipitadamente, algumas vezes até sobrepondo suas determinações e ordenando que um santo canonizado localmente fosse retirado do calendário, como fez o Papa Alexandre III em 1173. Esta tendência centralizadora continuou até o Papa Alexandre III publicar uma bula em 1170 reservando todas as canonizações à Santa Sé exclusivamente. Este foi o início do processo de canonização “moderno” como agora o conhecemos.
Por que a Santa Sé insistiu em assumir o processo de canonização à época? É importante notar que a apropriação das canonizações pela Santa Sé tomou lugar concomitantemente ao movimento canonista entre os séculos XI e XIII. O movimento canonista foi uma grande revolução legal no governo da Igreja. Livre do domínio dos governantes seculares após a Questão das investiduras, a Igreja do século XI embarcou no difícil, mas importante processo de racionalização de sua administração baseado em precedentes tradicionais, o que, na Idade Média, significou trazer séculos de práticas díspares de todos os cantos da Cristandade em harmonia e deduzir princípios legais a partir delas. Este processo monumental de juntar e codificar séculos de prática legal foi encabeçado por homens como os canonistas Anselmo de Lucca (c. 1083), Rolando Bandinelli (posteriormente Papa Alexandre III) e pelo famoso Graciano (c. 1150), compilador dos Decretos. O consequente renascimento do estudo da lei canônica foi iniciado pelos discípulos de tais homens, conhecidos por Decretistas.
O renascimento dos Decretistas durou até meados do século XIII e foi caracterizado por um desejo de aplicar normas legais regularizados a todo aspecto do governo da Igreja. Assim, o desenvolvimento do processo de canonização nessa época reflete um desejo de mover a canonização para longe dos domínios da boataria e do sentimento popular e em direção a uma posição firme e legal que daria ao processo mais credibilidade e o salvaguardaria à integridade da Fé. A canonização, assim, pode ser caracterizada como a lei aplicada à elevação de um santo.
Um desenvolvimento legal semelhante surgiu em paralelo à apropriação das canonizações pela Santa Sé: o surgimento das Cortes de Inquisição, primeiro episcopais e, em seguida, papais. Se a canonização era a lei aplicada à elevação dos santos, as cortes inquisitoriais eram a lei aplicada para lidar com a heresia. Devido a esta ênfase no procedimento legal, faz sentido pensar tanto na Inquisição como no processo da canonização como um julgamento. O suposto santo é o réu, e sua santidade deve ser defendida contra possíveis acusações. Enquanto não se conhece exatamente os processos canônicos para canonizações entre o século XII e o período Tridentino, é certo que eram vistos em termos de um tribunal.
Pode-se facilmente perceber isso no processo seguido durante a canonização de São Domingos em 1234. Testemunhas foram interrogadas, depoimentos foram tomados, «evidências» cuidadosamente catalogadas e «testemunhos» foram registrados.
Estabelecimento e papel do Promotor Fidei
Embora o ofício do Promotor Fidei (advocatus diaboli) não existisse na época de São Domingos, podemos notar em vigor os princípios fundamentais que mais tarde seriam assumidos por esse cargo. Ao ler a canonização de São Domingos, percebemos o depoimento de várias testemunhas, mas também percebemos testemunhas interrogadas que poderiam potencialmente desacreditar as alegações de santidade do Santo. Por exemplo, o confessor de São Domingos foi entrevistado, e mesmo que, obviamente, o conteúdo específico da confissão dele não tenha sido revelado, os inquisidores desejavam saber se São Domingos alguma vez havia cometido um pecado mortal. O confessor, o irmão Boaventura de Verona, atestou não acreditar que [São] Domingos tenha alguma vez cometido um pecado mortal [1]. O irmão Guilherme de Monferrato, que passou uma considerável quantidade de tempo em companhia de [São] Domingos, foi questionado se alguma vez o havia visto desviar da Regra. Ele respondeu negativamente [2]. Nisto vemos um exemplo da mentalidade inquisitiva que se desenvolveu nas canonizações: testemunhas podem depor a favor da santidade dos beati, mas essas testemunhas tinham de ser interrogadas. Sim, você testemunhou um milagre, mas testemunhou algum desvio à Regra? Sim, você testemunhou extremos atos de virtude, mas teve ciência de alguma ocasião na qual a pessoa em questão possa ter pecado? Uma única vez que fosse? Enquanto as canonizações no alto medievo eram inclinadas, primariamente, em torno do réu, vemos a presença de uma «prossecução», uma linha de questionamento que procura por pontos fracos na defesa. Assim, as canonizações apresentam uma forte semelhança com as audiências da Inquisição; isso não é surpreendente uma vez que as duas instituições se desenvolveram simultaneamente. Havia, algumas vezes, um cruzamento entre as duas; nas audiências de canonização de [São] Domingos, os eclesiásticos encarregados dos testemunhos auditivos também eram inquisidores.
À medida que avançamos para o período da Revolta Protestante, toda a doutrina da Igreja da comunhão dos Santos e os cultos dos Sancti foi posta em xeque, como também foram as práticas que haviam se desenvolvido fora dos cultos (veneração de relíquias, por exemplo). Seguindo a deixa dos humanistas do Renascimento como Erasmo, que escarneceu a veneração das relíquias e considerou boa parte do culto aos Santos no século XV questionável, os reformadores protestantes lançaram um ataque total contra a veneração católica dos Santos. Apesar de haver muitos argumentos teológicos e bíblicos em questão, muitos dos reformadores, incluindo Lutero, como Erasmo antes dele, contestaram com o fundamento de que as relíquias não eram adequadamente autenticadas, muitos dos cultos locais eram de historicidade questionável, vários acta e vitae circulando sobre muitos Santos eram, em sua maioria, lendários e os feitos de muitos Santos não eram suficientemente comprovados. Durante a Contrarreforma Católica, a Igreja pareceu admitir que, dada a instrução da época e o aumento nos avanços da ciência, medicina, etc., uma análise mais profunda das vidas e dos feitos dos supostos santos era apropriada. Consequentemente, em 1587, o Papa Sisto V criou o ofício de Promotor Fidei, tomando muitas das práticas persecutórias que haviam surgido nas canonizações medievais e centrando-as em um único indivíduo.
Na abertura da comissão de inquérito quanto à santidade de São Domingos, Gregório IX declarou que o propósito das investigações era assegurar que a Igreja estivesse “ardente para afirmar certeza e lenta para creditar questões duvidosas” [3]. Assim, seguindo o modelo de julgamento estabelecido na Idade Média, a Igreja nomeou seu próprio «promotor» para tentar refutar a santidade dos supostos santos. O poder confiado ao Promotor Fidei foi grande; em 1708, ele tornou-se o mais importante cargo na Congregação dos Ritos. Seu trabalho era escrutinar tudo relacionado à vida e feitos de um santo; a Enciclopédia Católica de 1913 sumariza seu papel como:
Para prevenir quaisquer decisões precipitadas relativas a milagres ou virtudes dos candidatos para as honras do altar. Todos os documentos dos processos de beatificação e canonização devem ser sujeitos ao seu exame, e as dificuldades e dúvidas levantadas por ele sobre as virtudes e os milagres são apresentadas à Congregação e devem ser satisfatoriamente respondidas antes que quaisquer outros passos possam ser dados nos processos. É seu dever sugerir explicações naturais por supostos milagres e mesmo apresar motivações humanas e mesquinhas para os feitos reputados como virtudes heroicas… Seu dever requer de si preparar por escrito todos os possíveis argumentos, mesmo, às vezes, parecendo triviais, contra a ascensão de alguém às honras do altar. O interesse e honra da Igreja preocupam-se em impedir alguém de receber essas honras cuja morte não seja juridicamente provada por ter sido “preciosa aos olhos de Deus. [4]
Quaisquer documentos ou processos não submissos ao escrutínio do Promotor Fidei tornam-se nulos e sem efeito por esse fato. Por causa do seu dever de sugerir explicações alternativas para os alegados milagres e virtudes, ele foi alcunhado de “advogado do diabo” (advocatus diaboli). Ele, então, servia como uma espécie de filtro para eliminar candidatos cuja santidade não estivesse acima de suspeitas, ou que talvez estivessem sendo canonizados temerariamente, por apelo popular ou devido à animosidade da época. O pensamento [vigente] era de que se os feitos de um santo fossem verdadeiramente milagrosos, eles iriam manter-se firmes a qualquer tipo de escrutínio; de fato, eles devem manter-se firmes a escrutínio se forem postos para os fiéis e para um mundo descrente como testemunhas da realidade da graça de Deus.
Todo ato de um santo deverá ser examinado, mesmo os que são aparentemente inofensivos. A obra definitiva pós-tridentina de como devem ser conduzidos os processos de canonização foi escrito por Prospero Lambertini, que foi Promotor Fidei por vinte anos e mais tarde tornou-se o Papa Bento XIV (1740-1758). Sua obra clássica De Servorum Dei Beatificatione et de Beatorum Canonizatione estabeleceu os princípios que deveriam ser seguidos nos processos de canonização até a era pós-Vaticano II. Nessa obra, nos são fornecidos todos os tipos de pergunta aparentemente triviais que o Promotor Fidei deve levantar em objeção à santidade de um candidato. Na seguinte passagem, vemos a questão colocada sobre se um candidato que dedicou muito da sua atenção à escrita deve ser culpado de vaidade:
Há muitos servos de Deus, como vimos, que ao comando dos seus superiores, dedicaram suas próprias vidas a ler, dando aí um relato, não somente das suas próprias ações louváveis, mas também dos vários dons e graças dispensado-lhes por Deus. E há outros, novamente, que, apesar de não terem exibido tais inclinações, as comunicaram pelas palavras de suas bocas aos seus confessores, seus companheiros, ou outros. Neste estado de coisas, então, uma dúvida é levantada se foram eles culpados do pecado da vaidade ou vanglória. Certamente não faltam exemplos de Santos que fizeram isso e [coisas] similares [ele continua citando os exemplos de São Paulo, São Inácio de Loiola e outros Santos que foram escritores prolíficos].
Se alguém supusesse desses e de tais exemplos que todos poderiam, sem a culpa do orgulho e da vanglória, anunciar suas próprias ações louváveis, ele iria enganar-se… Qualquer um, portanto, percebe ser necessário estar familiarizado com algumas regras, para fazer um correto juízo, tão logo seja feito o exame nas causas de tais servos de Deus como se comprometeram à escrita, ou relacionadas a outros, seus próprios grandes e nobres atos; um julgamento, digo, quanto a esse ponto, se o seu agir deve ser atribuído à virtude ou ao vício, a saber, a vanglória, que é reprovada pelo Apóstolo em sua Epístola aos Gálatas. [5]
Essa passagem é indicativa do grau de escrutínio ao qual eram submetidos. Poderia nos ocorrer de perguntar se um candidato à santidade tinha quaisquer graves defeitos de caráter; Lambertini sugere que devemos inquirir sobre motivações egoístas mesmo nas suas boas obras, como a escrita. Quantas pessoas pensariam em questionar a integridade de um candidato à santidade com base no fato de elas terem escrito muito? Mas Lembertini, e a Tradição da Igreja após ele, insistem que todo ato e motivação devem ser questionados, não importa quão trivial. Embora nenhum Santo seja absolutamente perfeito, o trabalho do Promotor Fidei era insistir que aqueles elevados à sagrada dignidade da santidade fossem o mais perfeitos possível – o que, com a graça de Deus, era um padrão muito, muito elevado.
É de se supor que tal escrutínio nas motivações de pessoas santas seria contrário à Fé, uma espécie de impiedade. Afinal, São Paulo nos fala que a caridade “tudo crê” e que devemos nos regozijar nas boas vidas de santos homens e mulheres ao invés de analisá-las procurando por falhas [6]. É verdade que o amor deve “crer em tudo”, mas também somos admoestados a temperar nossa credulidade: “Teste todas as coisas; conserve aquilo que for bom” [7]; em outras palavras, meça todas as coisas segundo o padrão de Cristo, retenha tudo quanto esteja à Sua altura, e então acredite nessas coisas. Lembre-se, como a Enciclopédia Católica expôs, “o interesse e a honra da Igreja estão em jogo” nas questões das canonizações, uma vez que a Fé do povo Cristão e a integridade da mensagem da Igreja são enfraquecidas se candidatos inaptos forem elevados aos altares. Assim, seria na verdade um pecado contra a Fé não examinar as vidas dos candidatos; deixar de perguntar questões suficientes sobre sua santidade seria comprometer a certeza da Fé, ao menos subjetivamente nas mentes dos fiéis. Esse é o motivo por que Lambertini cita o Pe. Bartoli, biógrafo de São Roberto Belarmino, dizendo que o fim desejável em qualquer canonização é «para a edificação de Sua Igreja, para a glória do Seu nome» e por que o Papa Alexandre III castigou um bispo em 1173 por permitir que um homem inadequadamente escrutinado fosse honrado como um santo, indo ao ponto de declarar, “Não se deve ter, portanto, a presunção de honrá-lo no futuro; pois, mesmo que milagres venham a ser realizados através dele, não é lícito venerá-lo como Santo sem a autoridade da Igreja Católica” [8].
Abolição do Promotor Fidei e Consequências
Se fossemos resumir o propósito do Promotor Fidei, seria apropriado dizer que seu trabalho era assegurar que as canonizações permanecessem uma questão de fato objetivo. Além da rigorosa linha de inquérito proposta pelo Promotor Fidei, quatro milagres eram também necessários para a canonização. Isso certamente significava que as canonizações fossem eventos raros; entre 1900 e 1978, apenas 98 santos foram canonizados, o que, como veremos, empalidece em comparação ao número de canonizações pós-1978.
Por volta do século XX, alguns começaram a alegar que o processo para canonizar os Santos era muito dispendioso; algumas reformas foram feitas durante o pontificado de Pio XI, como a instituição de um departamento especial de estudo para as causas “históricas”, distinto do departamento que estudava os aspectos teológicos da vida de um candidato. Mas os bispos continuaram a queixar-se que o processo era um fardo demasiado pesado; eles repetidamente pediram ao Papa por uma abordagem “simplificada”, preservando, no entanto, a integridade do processo investigativo. Papa Paulo VI subsequentemente criou a Congregação para as Causas dos Santos em 1969, tornando-a distinta da Sagrada Congregação dos Ritos, o que se tornou eventualmente a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos.
Mas a reforma real veio durante o pontificado de João Paulo II que, em 1983, promulgou a constituição Divini Perfectionis Magister que reformulou todo o processo de canonização como era conhecido desde a era tridentina, ab-rogando todas as antigas leis do processo e estabelecendo novas normas. Sob as reformas de João Paulo II, o papel do Promotor Fidei foi substituído por um Secretário, cujo trabalho era sobretudo o de um moderador para assegurar que o processo seja seguido. Os escritos teológicos de um santo são examinados por censores que procurariam por erros teológicos em seus trabalhos; outros, chamados Relatores, preparam relatórios documentando as [suas] virtudes e uma junta .
E o Promotor Fidei? Contrário à opinião popular, seu posto não foi abolido, apesar de João Paulo II tê-lo rebaixado e alterado a tal ponto que não é mais reconhecido como o mesmo posto estabelecido por Sisto V. No Capítulo 2 da Divini Perfectionis Magister, João Paulo II diz:
Na Congregação para as Causas dos Santos existe um Promotor da Fé ou Prelado teólogo, a quem compete:
- Presidir ao Congresso dos Teólogos, onde se efetua a votação;
- Preparar a relação sobre o mesmo Congresso;
- Participar como perito, mas sem voto, na Congregação dos Padres Cardeais e Bispos. [9]
Vemos, fundamentalmente, que a natureza probatória do processo de canonização foi abolida. Ao invés de um candidato estar em um tribunal tendo de encarar acusações pelo Promotor Fidei como o “promotor” da Igreja, o processo agora toma a forma de comitê onde especialistas apresentam relatórios. Problemas flagrantes na vida ou milagres de um candidato ainda são levados em conta, mas o aspecto inquisitorial do processo se foi. A exemplo disso, compare o antigo sistema, em que o Promotor Fidei era encarregado não apenas de presidir e preparar um relatório, mas de ativamente procurar causas naturais para milagres e motivações mesquinhas na vida de um candidato. Seu trabalho era não somente apontar problemas, mas ativamente procurá-los. Além do mais, o processo de canonização não podia prosseguir até que cada uma das objeções do Promotor Fidei fosse respondida a sua satisfação, dando-o um efetivo poder de veto em todo o processo de canonização.
No processo moderno, o Promotor Fidei não busca ativamente problemas, e já não tem nada parecido com um poder de veto sobre o processo; sua influência foi reduzida a apresentar relatórios e estar à mão como um “especialista” cuja opinião pode ser solicitada, mas não há nada no processo moderno onde o Promotor Fidei submeta uma lista de objeções que devem ser respondidas pelos Postuladores. Nem há qualquer delegação ao Promotor Fidei para pessoalmente aprovar toda evidência e documentação no processo sob pena de nulidade. Com a remoção do papel persecutório do Promotor Fidei e a redução de sua autoridade, ao invés de um foro para argumentar a favor ou contra as virtudes de um candidato, a Congregação para as Causas dos Santos tornou-se agora mais um comitê que reúne testemunhos favoráveis dos candidatos e emite relatórios sobre eles. A correspondente redução [do número] dos milagres necessários, de quatro para dois, diminui ainda o ônus de provas em favor do candidato.
O resultado é que a moderna Congregação tem sido desfavoravelmente comparada a uma “fábrica de [fazer] santos”. Acima atestamos que houve 98 canonizações de 1900 a 1978, uma média de 1,2 por ano. Quando comparamos ao pontificado de João Paulo II, a Igreja canonizou 480 santos de 1978 a 2005, uma média de 17,7 por ano, aumento de quase 1000%. Este aumento é sem precedente/inaudito; além de canonizar mais santos do que todos seus antecessores do século XX, o Cardeal Saraiva Martins estima que João Paulo II sozinho tenha canonizado mais santos que todos os papas anteriores que remontam a 1588 [10].
A Igreja ainda pode e às vezes até emprega testemunhas hostis para tentar encontrar culpa nos candidatos, mas muito comumente esses especialistas não são católicos, não possuem conhecimento em teologia, e as objeções que eles levantam são de uma natureza temporal. Por exemplo, os ateus Aroup Chatterjee e Christopher Hitchens foram convidados a testemunhar contra Madre Teresa em suas audiências em 2002. Suas objeções foram absurdas; Chatterjee alegou que Madre Teresa prejudicou a reputação de Calcutá e que sua caridade não foi efetiva na redução do somatório da pobreza. Tais objeções mundanas foram observadas e então deliberadamente ignoradas pela Congregação. Enquanto isso, problemas que verdadeiramente tinham importância na teologia católica, como a prática de Madre Teresa de rezar com pagãos, encorajando hindus a serem melhores hindus, suas declarações sincretistas de que todas as religiões adoram o mesmo Deus e a natureza extremamente questionável de seu milagre nunca foram abordados (veja aqui). Eles não foram abordados porque não havia alguém designado a apresentar potenciais evidências condenatórias contra a candidata. Ela foi regularmente beatificada sem que essas questões tenham sido resolvidas.
Enquanto alguns argumentam que o alívio do ônus da prova e a eliminação basilar do Promotor Fidei do seu papel tradicional não necessariamente significa que a integridade do processo tenha sido prejudicada, é inegável que as reformas de João Paulo II eliminaram salvaguardas que foram postas em prática por Papas anteriores, como Alexandre III, Sisto V e Bento XIV, [essas salvaguardas] com o único propósito de preservar «o interesse e a honra da Igreja» e «para a edificação de Sua Igreja, para a glória do Seu nome». Portanto, há um forte argumento a ser feito de que, ao eliminar essas salvaguardas, o Magistério moderno comprometeu a solidez do processo.
Outro elemento problemático da abordagem do Magistério moderno é a base lógica que saliente o aumento maciço das canonizações. Em vez de proclamar santos porque eles foram, de fato, objetivamente santos, as canonizações modernas parecem ter uma motivação oculta: servir de exemplo para o chamado universal à santidade ensinado no Vaticano II. Comentando sobre as muitas canonizações de João Paulo II, o cardeal Martins expôs que João Paulo II via suas canonizações no contexto do “cumprimento” da visão do Vaticano II:
A primeira razão dada [para tantas canonizações] pelo Papa foi que ele, beatificando tantos Servos de Deus, fez não mais que implementar o Concílio Vaticano II, que vigorosamente reafirma que a santidade é a nota essencial da Igreja… Assim, disse João Paulo II, a santidade é o que há de mais importante na Igreja, de acordo com o Concílio Vaticano II. Então não se deve ficar surpreso pelo fato de o Papa ter desejado propor tantos modelos de santidade aos cristãos, ao Povo de Deus.
A segunda razão é a extraordinária importância ecumênica da santidade. No Novo Millenio Ineunte, o Papa disse que a santidade dos Santos, bem-aventurados e mártires é talvez o mais convincente ecumenismo, essas são suas palavras, pois santidade, como ele disse com palavras ainda mais fortes, tem seu fundamento último em Cristo, em quem a Igreja não é dividida. Portanto, o ecumenismo que todos queremos exige muitos santos, para que o convincente ecumenismo da santidade seja posto no candelabro da santidade da Igreja. [11]
Não é sabido se o cardeal Martins fala o que está na mente de João Paulo sobre isso ou não, mas se assim for, é revelador. Ainda, sabemos que a santidade não é afirmada pela remoção das salvaguardas postas pela Tradição, salvaguardas cuja mesma existência serviu para assegurar que apenas verdadeiros modelos de santidade fossem propostos. Não se pode fazer mais suco de laranja simplesmente adicionando mais água no jarro; a adição tecnicamente aumenta o volume, mas o conteúdo da mistura resultante não é tão puro.
Mas a segunda declaração sobre o ecumenismo é mais interessante, porque o Cardeal basicamente admite um motivo velado nas canonizações modernas: “o ecumenismo que queremos exige muitos santos”, e, portanto, devemos ter mais santos! O efeito final de tudo isso é que, enquanto o Promotor Fidei assegurava que as canonizações continuassem uma questão objetiva, a subordinação da canonização às “necessidades” da Igreja moderna efetivamente subjetivou o processo. Uma canonização não é mais sobre se um candidato verdadeiramente atende o padrão de santidade da Igreja, mas sobre os modelos de que a Igreja “necessita” a um dado momento para promover sua visão particular.
Devem ser questionadas as canonizações modernas? Finalmente, é a opinião da maioria dos teólogos que as canonizações são infalíveis, ao menos em sua determinação final – isto é, o fato da canonização, não necessariamente a integridade das evidências, processo, metodologia, etc. O que estamos testemunhando não são santos que não são santos, mas santos cujo grau de santidade é muito inferior ao esperado nas gerações anteriores, como também menos aptos a imporem-se contra o escrutínio dos detratores seculares. Enquanto ninguém poderia duvidar dos milagres em Lourdes, que converteu mesmo ateus, nem mesmo o marido da mulher que Madre Teresa curou crê na legitimidade do milagre, nem mesmo os médicos. Ainda assim, devido à perda do papel do Promotor Fidei, estas objeções não precisam ser necessariamente resolvidas. Nos velhos tempos, o Promotor Fidei atacaria ou analisaria mesmo os bons feitos do candidato; agora, mesmo controvérsias são ignoradas.
Incidentalmente, no outono de 1965, quando alguns bispos começaram a pedir pela canonização de João XXIII, apenas três anos após sua morte, o esforço foi bloqueado pelo poderoso Cardeal Suenens e pelo próprio papa Paulo VI, que considerou precipitado propor um candidato à canonização logo depois de sua morte [12].
A Igreja necessita de modelos de santidade? Certamente. Como os conseguimos? Precisamos cultivar uma atmosfera espiritual em nossas paróquias e lares que nutra verdadeiros santos, para que realmente tenhamos um aumento objetivo na quantidade de pessoas santificadas. Não podemos ter mais santos facilitando a sua proclamação. Assim como não podemos fazer mais suco [somente] adicionando água.
NOTAS
[1] Audiência em Bolonha da Canonização de Domingos de Gusmão, Testemunho de Boaventura de Verona (5).
[2] Ibid., Testemunho de Guilherme de Monferrato (12).
[3] O decreto de Gregório IX, instituindo a Comissão de Inquérito, Roma, 13 de Julho de 1233.
[4] Fanning, William. “Promotor Fidei.” The Catholic Encyclopedia. Vol. 12. New York: Robert Appleton Company, 1911. 11 Jul. 2013 <http://www.newadvent.org/cathen/12454a.htm; see also, Burtsell, Richard. “Advocatus Diaboli.” The Catholic Encyclopedia. Vol. 1. New York: Robert Appleton Company, 1907. 11 Jul. 2013. <http://www.newadvent.org/cathen/01168b.htm>
[5] Lambertini, Prospero, De Servorum Dei Beatificatione et de Beatorum Canonizatione, “On Heroic Virtues“, c. 1:3,8.
[6] 1 Cor 13,7.
[7] 1 Ts 5,21.
[8] Lambertini, De Servorum Dei, “On Heroic Virtues”, c. 1:21 e Gregório IX, Decretales, III, “De reliquiis et veneratione sanctorum”.
[9] João Paulo II, Divini Perfectionis Magister, II, 10:1-3 (1983).
[10] http://www.ewtn.com/library/MARY/zmanysaints.HTM.
[11] Ibid.
[12] Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita.
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Tradução: José Napoleão Godoy