No texto anterior (que pode ser lido aqui) fizemos um resumo do reinado de Diocleciano, mostrando como ele chegou ao poder e algumas de suas principais medidas governamentais. Neste, falaremos sobre a perseguição iniciada em 295 d.C. e que ficou célebre por ser a última e mais cruel perseguição contra o cristianismo na história do Império Romano.
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No ano em que Diocleciano organizou a tetrarquia (293 d.C.), haviam-se passado mais de trinta anos desde a última perseguição. Durante esse tempo, a Igreja pôde celebrar a liturgia publicamente e construir igrejas cada vez maiores; os bispos não precisavam mais se esconder e muitos cristãos ocupavam postos importantes no exército e na administração pública.
Como relata o historiador eclesiástico Eusébio de Cesareia:
Ainda assim, prova disto poderia ser a acolhida dos soberanos para com os nossos, a quem inclusive entregavam o governo das províncias, dispensando-os da angústia de ter que sacrificar, pela muita amizade que reservavam a nossa doutrina. Que necessidade há de falar dos que estavam nos palácios imperiais e dos supremos magistrados? Estes consentiam que seus familiares — esposas, filhos e criados — agissem abertamente, com toda liberdade, com sua palavra e sua conduta, no referente à doutrina divina, quase permitindo-lhes inclusive gloriar-se da liberdade de sua Fé. Consideravam-nos especialmente dignos de aceitação, mais ainda do que seus companheiros de serviço (História Eclesiástica, livro VIII capítulo I).
Havia cristãos até na corte de Diocleciano; sua esposa Prisca e sua filha Valéria mantinham intenso contato com cristãos; seu camareiro-mor era o cristão Doroteu e corria o boato na corte de que o césar Constâncio Cloro estava em vias de se converter. Diocleciano, que não podia ignorar esses fatos, nada fez para mudá-los durante seus dez primeiros anos de reinado.
Que o teria levado então a iniciar a perseguição em 295? Segundo o historiador Daniel-Rops:
À medida que progredia no caminho da organização pública e centralizadora, o sistema tetrárquico podia suportar cada vez menos qualquer espécie de não-conformismo. A oposição entre o cristianismo e este regime de coação oficial residia da própria natureza dos dois adversários: já então a Igreja, frente ao totalitarismo, assumia uma atitude de recusa e de resistência. Diocleciano acabou por compreender que os cristãos nunca colaborariam nos seus esforços e que se conservariam, substancialmente, na oposição (A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, capítulo IX).
Ou seja, diferente das outras, a última perseguição não foi motivada por clamor popular, ou por alguma crise social (seca nos campos, derrotas na guerra). Foi o próprio Estado que, no auge do totalitarismo, não podia suportar outra sociedade paralela à oficial [1].
Apontada essa causa, não podemos, entretanto, ignorar a existência de motivos espirituais. Como relata Eusébio de Cesaréia, houve um relaxamento na piedade e nos costumes dos cristãos; isso teria atraído para eles a cólera de Deus.
Mas desde que nossa conduta mudou, passando de uma maior liberdade ao orgulho e à negligência, e uns começavam a invejar e injuriar aos outros, faltando pouco para que fizéssemos a guerra mutuamente com as armas mesmo, e os chefes dilaceravam os chefes com as lanças das palavras, os povos se sublevavam contra os povos e uma hipocrisia e dissimulação sem nome alcançavam o mais alto grau de malícia, então o juízo de Deus, com parcimônia, como gosta de fazer, quando ainda se reuniam as assembleias, suave e moderadamente começava sua visita… (História Eclesiástica, livro VII capítulo I)
Voltando a causa apontada por Rops, o historiador Lactâncio informa que foi o César Galério o fomentador da repressão, aquele que convenceu Diocleciano da ameaça que os cristãos representavam. Ciente do apoio que parte deles dava ao César Constâncio Cloro e a seu filho Constantino, e sendo um verdadeiro crente do paganismo, foi Galério quem, após acumular prestígio com vitórias militares contra os persas, exerceu pressão sobre Diocleciano, já velho, para que ele retomasse as perseguições.
Galério usou como argumento dois casos de insubordinação no exército por parte dos cristãos. Na Numídia (uma região do Norte da África que atualmente corresponde a parte da Argélia e da Tunísia ocidental), o recruta Maximiliano, alegando objeção de consciência, se recusou a cumprir seus deveres militares; já em Tanger, o centurião Marcelo insultou os ídolos em meio a um banquete solene e lançou à terra o seu cinturão. Ambos foram condenados e executados, mas Galério tinha certeza de que esses casos não deviam ser os únicos. Diocleciano concordou que algo precisava ser feito, mas ainda não permitiu uma perseguição violenta e por isso decretou que, para manter seus postos no exército e evitar o degredo, os cristãos deveriam sacrificar aos ídolos. Muitos abandonaram o exército, mas a medida foi considerada branda por Galério, que, ainda segundo Lactâncio, “teria queimado vivas todas as pessoas que se recusassem a sacrificar”. Por isso ele ficou à espera de uma nova chance para instigar uma perseguição violenta.
A nova oportunidade surgiu em 302 quando Diocleciano foi à Antioquia consultar os arúspices — sacerdotes imperais — e estes declararam não enxergar o futuro nas vísceras dos sacrifícios. Após repetir o ritual adivinhatório inúmeras vezes Tângis, o chefe dos arúspices, declarou que os cristãos da comitiva imperial, que estavam presentes na cerimônia, ao persignarem-se com o sinal da cruz, profanaram os ritos e expulsaram a presença dos “deuses”. Diocleciano então obrigou todos os membros da comitiva a escolher entre sacrificar aos ídolos ou serem flagelados.
Depois desse incidente Diocleciano se reuniu com Galério para decidir qual política adotar contra os cristãos. Enquanto aquele estava satisfeito em afastar os cristãos do exército e da administração pública, este desejava uma verdadeira perseguição com a proibição do culto, a demolição das igrejas e a pena de morte para aqueles que não renegassem a Fé. Outros magistrados e oficiais militares que foram chamados a opinar apoiaram Galério. Consultado, o oráculo de Apolo em Mileto disse que pessoas ao redor do mundo o impediam de ver o futuro. Diocleciano acabou por ceder e um novo edito foi promulgado, ordenando que cessassem as assembleias cristãs, fossem demolidas as igrejas e lançados na fogueira os livros litúrgicos, além de obrigar todos os funcionários públicos cristãos a abjurar. O edito deveria entrar em vigor em 24 de fevereiro de 303, mas em Nicomédia a perseguição começou um dia antes; a Igreja da capital foi saqueada e demolida pela guarda pretoriana e os livros litúrgicos lançados às chamas.
Note-se que o decreto não previa nenhuma punição que atentasse contra a vida dos cristãos; apesar de concordar com a perseguição, Diocleciano ainda resistia a medidas sanguinárias. Para convencê-lo a desencadear a perseguição total, Galério contratou pessoas para incendiar as imediações do palácio imperial em Nicomédia; a culpa recaiu nos cristãos, que tinham motivos para estar descontentes por causa do edito. Enfurecido, Diocleciano autorizou que todos os funcionários do palácio fossem torturados até que entregassem os culpados; contudo, como os membros da comitiva de Galério não foram molestados, não se descobriu a verdade. Outro incêndio começou quinze dias depois, mas foi rapidamente contido.
Julgando-se cercado de traidores, Diocleciano desconfiou da própria família e obrigou sua esposa e filha a renegar a Fé cristã publicamente, mandou prender Doroteu e o Bispo Antimas de Antioquia junto com vários sacerdotes e leigos, que pereceram após inúmeras torturas.
Eusébio de Cesareia narra o martírio de um dos cristãos que trabalhavam na corte de Diocleciano:
Ordenaram-lhe, pois, que sacrificasse, e ao opor-se, mandaram pendurá-lo desnudo e lacerar todo seu corpo a força de açoites até que, rendido, fizesse o ordenado mesmo contra a vontade. Mas como ele se mantinha inflexível mesmo depois de padecer estes tormentos, e seus ossos já apareciam à vista, misturaram vinagre com sal e o derramaram nas partes mais laceradas de seu corpo. Mas também desdenhou estas dores, e então trouxeram umas brasas de fogo, e como se faz com a carne comestível, foram consumindo no fogo o resto de seu corpo, e não todo de uma vez, para que não morresse em seguida, mas pouco a pouco. Os que o haviam posto sobre a fogueira não podiam soltá-lo até que, ainda depois de tantos padecimentos, desse sinal de aceder ao mandado. Mas ele, solidamente aferrado a seu propósito, entregou vencedora sua alma em meio aos tormentos. Tal foi o martírio de um dos servidores imperiais, digno realmente do nome que levava: chamava-se Pedro (História Eclesiástica, livro VIII, capítulo VI).
Um terceiro edito foi promulgado, concedendo liberdade aos cristãos que sacrificassem aos deuses e ordenando a tortura daqueles que se recusassem; o decreto do imperador Décio, que obrigava todos os cristãos a sacrificar aos ídolos, foi posto novamente em prática. Tinha início a perseguição propriamente dita, que durou dez anos e foi designada pela Igreja do Egito como “a era dos mártires”, tal foi o número de cristãos mortos em razão de sua Fé. O ocidente foi pouco afetado porque Constâncio Cloro, senhor da Gália, Hispânia e Britânia, reduziu a perseguição a mera destruição de algumas igrejas. Mas em todo o oriente romano o sangue cristão fluiu em abundância.
Uns foram mortos com machados, como ocorreu aos da Arábia; a outros queimaram as pernas, como sucedeu aos da Capadócia; às vezes os penduravam do alto pelos pés, cabeça para baixo, e acendiam debaixo um fogo lento, cuja fumaça os asfixiava ao arder a lenha, como no caso dos da Mesopotâmia; e às vezes cortavam-lhes o nariz, as orelhas e as mãos e partiam em pedaços os restantes membros e partes de seus corpos, como aconteceu em Alexandria (Ibid., livro VIII, capitulo XII).
Na Frígia e na Palestina, cidades foram incendiadas com seus habitantes dentro das muralhas; os horrores da repressão foram tão grandes que, em Antioquia, alguns cristãos cometeram suicídio para evitar a captura; aqueles que escaparam da morte e sobreviveram à tortura foram reduzidos à escravidão, sendo os homens enviados para as pedreiras ou minas e as mulheres condenadas à prostituição.
Diante de tanta humilhação e sofrimento, não seria estranho à razão humana que os cristãos sacrificassem aos ídolos; e infelizmente ocorreram várias apostasias. Mas, muito maior foi o número daqueles que abraçaram a loucura da Cruz e, crucificados com Cristo, receberam a coroa da Glória e o direito de ter seus nomes louvados através dos séculos em toda a Igreja militante.
Alguns foram cercados de tanta veneração por parte dos fiéis que tiveram seus nomes inseridos no Cânon Romano, são eles: São Crisógono, São Cosme e São Damião, São Marcelino e São Pedro [2], Santa Luzia (ou Lúcia), Santa Inês e Santa Anastácia. Outros, apesar de não entrarem no Cânon, são muito conhecidos e venerados. Eis alguns exemplos: São Sebastião, São Jorge da Capadócia, Santa Catarina de Alexandria, São Brás, São Pantaleão, São Marcelino Papa [3] e os Quatro Santos Coroados.

Figura 1 – Da esquerda para direita, de cima para baixo: São Jorge da Capadócia, São Cosme e São Damião, Santa Inês e Santa Luzia.
A perseguição foi afetada pelas renuncias Diocleciano e Maximiano em 305, criando uma estranha situação: enquanto no Ocidente, Constâncio Cloro e Flávio Severo encerram a perseguição nos poucos lugares onde havia, o Oriente padeceu com a ascensão de Galério ao trono imperial e de seu sobrinho, Maximino Daia, ao posto de césar. Inicialmente, Maximino tentou perverter os cristãos por métodos não violentos, mas, quando viu que os resultados eram irrisórios, adotou a brutalidade. Um novo decreto, assinado em 306, obrigava todos os cidadãos a fazer sacrifícios públicos aos deuses e determinava que arautos fossem enviados para percorrer todas as ruas das cidades, convocando os cidadãos pelo nome, de modo que ninguém pudesse escapar. Maximino chegou ao ponto de decretar que todos os alimentos vendidos nos mercados fossem lavados com “água benta” pagã e que, para entrar nos banhos públicos, era necessário queimar incenso aos deuses.
A cristandade do oriente padeceu por mais seis anos, até que, subitamente, Galério ordenou o fim da perseguição em seus domínios. Acometido por uma doença terrível — que lhe causou hemorragias, gangrena e o aparecimento de vermes nas chagas — e, tendo perdido a confiança nos seus médicos e curandeiros ele, por fim, a reconheceu como um castigo de Deus por causa de todo sofrimento que imposto à Igreja.
O edito, assinado em 30 de abril 311, declarava que a Igreja tinha o direito de existir e que seus membros não deveriam ser molestados por causa de sua Fé; aqueles que ainda estavam presos foram libertados. O documento terminava ordenando aos cristãos que rezassem a Deus pelo bem-estar do imperador e pela recuperação do império [4] como uma forma de retribuir a tolerância que lhes foi concedida.
No Ocidente, o decreto teve pouca importância, pois seus novos senhores (Constantino e Maxêncio) eram tolerantes com a Igreja. Na porção do oriente governada por Licínio a repressão, já fraca, também cessou. Maximino Daia, que não podia ignorar uma ordem do seu superior, reduziu sua aplicação a meras ordens verbais, ordenando a soltura dos cristãos, mas quando Galério morreu no final de 311 e Maximino assumiu o trono imperial, a perseguição recomeçou. Essa última fase da perseguição, além da repressão física, foi marcada por um novo tipo de violência: a propaganda enganosa. Por meio de falsas confissões de cristãos, que relatavam os ritos da Igreja como práticas infames e macabras, da divulgação da biografia de Apolônio de Tiana por Filostrato (inventada no século anterior, a biografia tinha o objetivo de transformar Apolônio num equivalente pagão de Cristo) e dos Atos de Pilatos (um apócrifo do Novo Testamento supostamente escrito por Pilatos onde ele, para relatar o processo contra Jesus, transforma-O em outra Pessoa e muda o significado de Sua mensagem) Maximino procurou atingir os cristãos em sua Fé.
Mas a Providência Divina já havia determinado que seu reinado seria curto e que a vitória da Igreja estava próxima; apenas dois anos depois, Constantino e Licínio se uniram para tomar o controle do Império. Licínio acabou por derrotar Maximino na Batalha de Tzíralo. Maximino conseguiu escapar da batalha, para morrer meses depois enquanto fugia das tropas inimigas.
A morte de Maximino e a ascensão de Constantino e Licínio, significou o início de uma nova era para a Igreja. Sua vitória só não foi completa porque, por volta da mesma época, no Norte da África e no Egito, duas heresias se desenvolviam e uma delas, o Arianismo, quase destruiu, se isso fosse possível, a Igreja.
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Notas
[1] Além do cristianismo, a perseguição também atingiu os judeus, os filósofos neo-platônicos e os hereges maniqueus.
[2] O São Marcelino em questão era um padre da diocese de Roma, e não o Papa que reinou por volta do mesmo período. Já São Pedro era um exorcista também da diocese de Roma; o Apóstolo de mesmo nome é citado em outra parte do cânon.
[3] A morte do Papa São Marcelino iniciou um dos maiores períodos de Sé vacante da história; a Igreja passou quatro anos sem papa.
[4] Nesse tempo o império enfrentava uma nova guerra civil, que será tratada no próximo texto.
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Bibliografia
- CESAREIA, Eusébio. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002. p 176 e ss.
- ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo: Quadrante, Sociedade de Publicações Culturais, 1988. v.1. p 389 e ss.
- LACTÂNCIO, Lucio Célio Firmiano. A morte dos perseguidores. Disponível em <http://www.newadvent.org/fathers/0705.htm>. Acesso em 10/12/2017.