SOBRE AS CANONIZAÇÕES

ceremony-canonization

Texto a seguir faz uma comparação interessante entre o antigo processo de canonização e o processo reformado. Não temos necessariamente a mesma opinião do autor, mas o quadro comparativo é bastante interessante.

Sobre o assunto, há os seguintes textos: Advogado do diabo e Madre Teresa.

O texto originalmente aqui.

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Canonização: comparação do Velho vs. Novo

 

Os céticos às canonizações modernas muitas vezes notam que os processos com o quais a Igreja eleva santos aos seus altares foram “mudados” desde o Concílio Vaticano II. Quais foram essas mudanças? O Papa Paulo VI começou a mudança em 1969. Seu decreto Sacra Ritua Congregatio dividiu a Congregação dos Ritos em duas congregações: a Congregação para o Culto Divino e a Congregação para as Causas dos Santos. Essa última foi subdividida em três departamentos, levando a uma consequente reestruturação do processo de canonização. Entre 1969 e 1983, essa mudança correu de forma fluida. Em 1983, João Paulo II em sua [Constituição Apostólica] Divinis Perfectionis Magister simplificou ainda mais o processo, como também fez a famosa abolição do cargo de Promotor Fidei (“Advogado do Diabo”) para tornar a função [dos departamentos] menos contraditória.

Mas em que mais diferem-se os processos pré-1969 e pós-1983? Quanto realmente mudou nesse decurso?

Para ajudar a responder essa questão, preparamos um quadro comparativo do processo pré-1969 (que permaneceu relativamente intacto desde 1588) com a reestruturação pós-1983. É importante notar, uma vez que entre os anos de 1969 e 1983 foram como uma espécie de período provisório em que o sistema estava em mudança, que ele não está incluso aqui, embora um estudo sobre as mudanças desse período seria muito esclarecedor. Nós apresentamos meramente o sistema antes de Paulo VI em contraste com as revisões feitas por João Paulo II em 1983, revisões que caracterizam o atual processo seguido em beatificações e canonizações.

Canonização Pré-1969

Canonização Pós-1983

  • O Bispo da diocese em que o indivíduo morreu, por sua autoridade ordinária, forma um tribunal para tratar da causa. Pessoas são convocadas ao tribunal para testemunhar pela reputação de santidade. Um cuidadoso escrutínio é realizado nos escritos do candidato. O candidato é, então, considerado “Servo de Deus”.
  • Quando estas inquirições são concluídas, seus resultados são anexados e enviados à Sagrada Congregação dos Ritos. A Congregação revisa os documentos do tribunal diocesano. Se sua análise for favorável, eles prosseguem e formam uma comissão para a Causa do candidato.
  • A Congregação aponta tanto um Postulador Geral, responsável por promover a Causa, quanto um Promotor Fidei, comumente conhecido como Advogado do Diabo. O papel do Promotor é levantar objeções à Causa, como também assegurar que a adequada forma canônica seja seguida em todo o decurso.
  • O Promotor Fidei formula suas objeções.
  • O Promotor Geral tem uma oportunidade de responder às objeções, tanto diretamente quanto através de um advogado nomeado por ele.
  • Os Cardeais da Sagrada Congregação dos Ritos, tomando em conta os argumentos do Promotor Fidei e do Postulador Geral, emitem um parecer. Se o parecer for favorável, esse é enviado ao Santo Padre para [receber] sua assinatura. O Papa assina o documento com seu nome de batismo – não com seu nome pontifício.
  • Neste momento, uma positio geral é composta por um advogado e estabelecida ante a Congregação. Isso inclui uma declaração completa da Causa, um sumário das objeções levantadas pelo Promotor Fidei com as réplicas do advogado, como também um resumo do processo canônico a ser seguido. A Congregação dá à positio sua homologação e uma declaração é emitida para o seguimento da Causa.
  • O Papa emite cartas remissórias ao Bispo da diocese onde o Servo de Deus faleceu. É requerido ao Bispo convocar um tribunal com não mais que três meses após receber a carta e concluí-lo em até dois anos.
  • O tribunal do Bispo é formado, consistindo de cinco juízes, dois sub-promotores e um notário. Testemunhas da santidade do Servo de Deus são entrevistadas de acordo com interrogatórios pré-estabelecidos elaborados pelo Promotor Fidei. A evidência de virtudes especiais e de milagres é devidamente registrada.
  • Uma cópia do processo inteiro (Acta) é elaborada e enviada a Sagrada Congregação.
  • A Congregação considera a validade do tribunal diocesano. É apresentada uma segunda positio, essa resumindo os procedimentos usados no tribunal diocesano, cujo intuito é demonstrar que todas as regras foram obedecidas.
  • Uma discussão é realizada em uma assembleia geral da Congregação sobre a validade dos processos em nível tanto diocesano quanto apostólico. Se o julgamento for favorável, é confirmado pelo Papa, que publica o Decreto de Validade atestando a solidez do método.
  • Em seguida vêm as sessões para determinar a prova de heroísmo no exercício das virtudes particulares (ou da prova do martírio). Isso leva três sessões: uma antepreparatória em que participam apenas oficiais da Causa; uma preparatória, com todos os Cardeais da Congregação presentes; e, finalmente, a assembleia geral, onde participam todos os Cardeais e oficiais da Causa na presença do Santo Padre.
  • Se todas as três sessões confirmarem a presença de virtude heroica, um decreto para este efeito é emitido pelo Santo Padre. Daqui em diante, o candidato pode ser chamado Venerável, embora a veneração pública ainda não seja permitida.
  • Milagres são necessários para a beatificação, mas seu número depende de alguns poucos fatores. Dois são necessários se depoimentos de testemunhas oculares puderem ser produzidos; três, se as testemunhas oculares estavam acessíveis na fase de documentação inicial, mas tenham falecido desde então; quatro milagres são necessários se a evidência se baseia inteiramente na tradição ou em fontes textuais.
  • As evidências dos milagres são compiladas pelas autoridades diocesanas competentes nas dioceses onde os milagres ocorreram. Elas são enviadas à Congregação, que passa ao julgamento quanto à validade do processo na instância diocesana, como também [quanto à validade] dos fatos dos casos. Se os milagres são críveis, um decreto é emitido para este efeito.
  • Depois disso, a Congregação debate se a Causa deve ou não proceder à beatificação. É costumeiro permitir passar um curto período de tempo antes que Santo Padre tome medidas sobre o caso.
  • O Santo Padre emite um breve pontifício no qual anuncia a data para a solene beatificação, ao mesmo tempo em que estabelece uma Missa e um Ofício em honra ao beato, como também festividades especiais, usualmente um Triduum.
  • Antes da Causa proceder à canonização, devem ser atribuídos ao beato mais dois milagres (se foi formalmente beatificado) ou três milagres (se foi concedida beatificação equivalente). Isso pode acontecer anos ou mesmo séculos após a beatificação.
  • Tão logo quanto um milagre possa ser submetido, o Postulador pode requerer à Santa Sé uma comissão para a ‘ressubmissão da Causa’. O Postulador prepara a positio para a reabertura da Causa.
  • Os argumentos do Postulador são considerados na próxima assembleia geral da Congregação. Se o julgamento for favorável, recomenda-se ao Santo Papa a publicação de um decreto reabrindo a Causa, o que o Santo Padre faz.
  • A cúria das dioceses onde ocorreram os milagres institui processos para documentar todos os fatos relativos aos milagres. Esses processos são ditados pela Congregação.
  • Essas novas Atas são submetidas à Sagrada Congregação dos Ritos para revisão. Se seu julgamento for favorável, o Santo Padre emite um decreto constare de miraculis, declarando que os milagres foram provados e são críveis.
  • O Papa requisita um julgamento da Sagrada Congregação dos Ritos se o beato deve ou não proceder à canonização. Se o voto for favorável, o Papa emite um decreto “De Tuto”, declarando que o processo pode seguir seguramente para a etapa final. A canonização é anunciada, ainda sem data definida.
  • O Sumo Pontífice preside diversos consistórios, nos quais toda a questão é discutida novamente. Este é um momento para um sumário de todas as evidências em favor da canonização. Finalmente, a data para a canonização é anunciada em um consistório público ou semipúblico.
  • A solenidade da canonização ocorre na Basílica de São Pedro. O candidato é considerado agora um Santo. Seu Postulador organiza uma novena de celebrações (ou um Triduum) a ser realizado em alguma igreja ligada ao Santo.
  • O candidato deve estar morto há pelo menos 5 anos.
  • O Bispo da diocese onde o indivíduo morreu pode requerer à Santa Sé a abertura da Causa para beatificação ou canonização. Em caso de religiosos, o requerimento é feito por seu instituto religioso.
  • Os dicastérios apropriados, especialmente a Congregação para a Doutrina da Fé, revisam as petições. Se eles não tiverem objeções, emitem um nihil obstat para o Bispo, permitindo o início do processo. O indivíduo é agora considerado um Servo de Deus.
  • O Bispo ou instituto religioso aponta um Postulador, cuja função é promover a Causa, como também juntar testemunhas sobre a vida e virtudes do Servo de Deus. Todos os escritos públicos e privados do Servo de Deus devem ser reunidos e examinados. Esta fase documental pode levar muitos anos [para ser concluída].
  • Após a fase documental ser concluída, a Postulador apresenta toda sua documentação ao tribunal diocesano, que decide se as virtudes heroicas do Servo de Deus foram demonstradas. Se o Bispo julgar favoravelmente, seu julgamento junto dos volumes encadernados de documentação (Acta) são enviados à Congregação para a Causas dos Santos.
  • As Acta resultantes das fases documental e informativa do processo são dadas pela Congregação a um Relator apontado entre o Colégio de Relatores da Congregação, cuja tarefa é superintender a Causa pelo resto do processo.
  • Trabalhando junto de uma comissão teológica estabelecida pela Congregação, o Relator usa toda a documentação disponível para preparar uma positio resumindo a vida e virtudes do Servo de Deus.
  • Quando concluída, a positio é apresentada ante a comissão teológica, que presta um voto positivo ou negativo.
  • Os resultados da comissão são, por sua vez, passados aos membros superiores da Congregação, todos Bispos, Arcebispos e Cardeais. Se votarem negativamente, a Causa morre. Se votarem afirmativamente, um Decreto de Virtude Heroica é enviado ao Santo Padre para seu julgamento.
  • Se o Santo Padre concordar com os achados da Congregação, o Servo é considerado Venerável.
  • O candidato permanece Venerável até que um milagre ocorra e possa ser atribuída a sua intercessão. O milagre deve ser escrutinado por tribunais tanto científicos quanto teológicos. O propósito do tribunal científico é de excluir qualquer explicação natural; o propósito do tribunal teológico é determinar se o fenômeno é um milagre em sentido estrito (atribuído a Deus) e, segundo, se é devido à intervenção do Venerável, apenas. A evidência do milagre é proposta da diocese na qual o milagre ocorreu (não necessariamente a diocese da Causa). É trabalho da diocese examinar esses milagres.
  • A documentação do milagre é enviada à Congregação das Causas dos Santos, a qual estabelece seus próprios tribunais científicos e teológicos. O tribunal científico deve dar um voto afirmativo antes de [a Causa] passar ao tribunal teológico. O voto afirmativo da comissão teológica é, então, transmitido para a Assembleia Geral dos membros cardeais e episcopais, cujo julgamento favorável é encaminhado ao Sumo Pontífice.

(NOTA: O milagre pode ser dispensado em caso de martírio)

  • Se o Santo Padre aprovar o voto da Congregação quanto à autenticidade do milagre, o Venerável é beatificado e, desde então, conhecido como Beato. Beatos podem receber veneração pública a nível local ou regional, usualmente restrito àquelas dioceses ou institutos religiosos intimamente associados com a vida do candidato.
  • Após a beatificação, a Igreja procura por um segundo milagre antes de proceder à canonização. O processo é o mesmo para o milagre que fez a beatificação possível. O alegado milagre é estudado por comissões científicas e teológicas na diocese no qual se alega sua ocorrência.
  • Depois da conclusão do processo diocesano, o proposto milagre é estudado por uma comissão científica e teológica da Congregação para as Causas dos Santos. O voto dessa comissão é encaminhado aos membros episcopais da Congregação cujo voto afirmativo é comunicado ao Santo Padre.
  • O consentimento do Santo Padre para a decisão da Congregação resulta em um Decreto de Milagre. A canonização agora é possível.
  • Pelo Rito de Canonização, o Sumo Pontífice declara o candidato como um santo.

Você notará, obviamente, que o sistema pré-1969 é bem mais longo. Entretanto, o mero fato de ser mais longo não significa que seja mais minucioso ou melhor; é de conhecimento comum que em burocracias muito papel seja necessário e muitos relatórios emitidos entre departamentos, mas tal coisa não é garantia de que algo produtivo esteja acontecendo.

A diferença entre o velho e o novo processos não é a sua extensão, mas o seu caráter. No sistema pré-1969, você notará o cuidado com que a integridade do processo em si é salvaguardada. A Sagrada Congregação deve atestar a validade da metodologia usada nos tribunais diocesanos. O Promotor Fidei deve assinar no formulário canônico de cada ato do Postulador e da Congregação. A validade das inquirições dos milagres do candidato é escrutinada. Há uma estrita atenção à forma e à metodologia no processo pré-1969 que simplesmente falta no sistema pós-1983.

Ainda que o [cargo do] Promotor Fidei não tenha sido abolido em 1983, seu papel foi grandemente reduzido. Esse foi outro exemplo de como há menos atenção ao método no sistema pós-1983, uma vez que um dos principais papéis do Promotor Fidei era escrutinar os procedimentos pelos quais caminhava o processo.

Essencialmente, enquanto o processo de canonização moderno mantém os detalhes do sistema pré-1969, o aspecto de equilíbrio de poderes que caracterizava o sistema pré-1969 foi enfraquecido. A rígida fiscalização está em falta no sistema contemporâneo. Não vamos revisar esse argumento inteiramente, mas recomendamos que o leitor consulte nosso longo artigo “História de Advogado do Diabo” para mais em como o caráter da canonização foi mudado.

Nada disso é para sugerir que as canonizações modernas são inválidas, naturalmente; a validade da canonização nunca foi dependente de um processo particular adotado até a chegada à canonização, que mudou através dos séculos. Entretanto, uma comparação objetiva no velho e novo sistemas dá motivos para preocupação, uma vez que a integridade do processo contemporâneo é menor – não tanto pela falta de algo encontrado no velho sistema, mas por uma mudança de paradigma no entendimento do que deve realizar. [1]

 

NOTAS

Detalhes do processo de canonização e beatificaçao pós-1983 foram tirados de The Process of Beatification and Canonization, EWTN, <https://www.ewtn.com/johnpaul2/cause/process.asp>, Accessed 6 Sept, 2015.

O processo de canonização pré-1969 foi tirado do ensaio The Process of Beatification and Canonization por Rev. Abbot Aloysius Smith, CRL, DD., encontrado em The English Martyrs, ed. Rev. Dom Bede Camm, OSB (1929, Herder Book Company, Cambridge, England), pp. 43-54.

***

Tradução: José Napoleão Godoy

 

Nota do editor

[1] É precisamente aqui que reside uma de nossas divergências com o autor original. Se os dois processos são meramente formais (no sentido jurídico, não filosófico), por que a preocupação quanto a eles? Não salta à vista a incrível diferença entre os processos, quanto a sua seriedade e, por que não, validade? O desprezo pelo papel do advogado do diabo é uma clara evidência do novo paradigma de santidade que assola a Igreja pós-conciliar.

3 respostas em “SOBRE AS CANONIZAÇÕES

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