O NOVO PAI NOSSO

Bloch-SermonOnTheMount

No Sermão da Montanha, Nosso Senhor, interpelado por Seus discípulos a que Ele os ensinasse a como bem rezar, ensinou-lhes a oração do Pai Nosso, modelo de toda oração.

Versão latina Moderna tradução para o português

Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum: adveniat regnum tuum: fiat voluntas tua, sicut in cælo, et in terra.

Panem nostrum cotidiánum da nobis hodie: et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in tentationem, sed libera nos a malo. Amen.

Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso reino; seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

A tradução literal, que sempre foi usada pelos católicos e alguns protestantes históricos (os anglicanos ainda a utilizam), da parte destacada é: “e perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”.

Não bastasse a hecatombe pós-conciliar, algumas conferências episcopais abusam da criatividade, da falta de respeito e de rigor teológico. De fato, trocar «dívidas» por «ofensas» releva tudo isso.

Criatividade

A criatividade é bem conhecida da tradução para o português; para listar algumas:

  • Resposta dada em várias saudações durante a Missa: «Ele está no meio de nós», em vez de «E com o teu espírito» (Et cum spiritu tuo) [1];
  • Resposta à primeira saudação do celebrante: «Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo», em vez de «E com o teu espírito» (Et cum spiritu tuo);
  • Resposta dado ao desejo da paz: «O amor de Cristo nos uniu», em vez de «E com o teu espírito» (Et cum spiritu tuo);
  • Na consagração do vinho: «Por todos», em vez de «Por muitos» (por multis).

Não é uma tradução interpretativa, que visa o melhor entendimento do leitor, mas uma verdadeira criatividade que modifica o sentido real e original da expressão.

Citemos uma outra opção de tradução à resposta «Et cum spiritu tuo»: E contigo também. Embora não literal, não existe dano ou mudança de significada entre o original e a tradução, sendo, talvez, até mais compreensível. Não é, evidentemente, o que ocorre nos casos supracitados, tampouco no caso do Pai Nosso.

Alguns insistem em justificar a mudança afirmando que as palavras significam a mesma coisa. Bem, a isso perguntamos: se não há diferença entre as palavras, por que mudá-las? Por que modificar uma tradução tão antiga e que já era de domínio entre os fieis? Evidentemente que para os tradutores essas palavras não têm o mesmo significado. E têm razão! Simplesmente dívida não remete a ofensa.

A justificativa oficial dada pela conferência episcopal aponta para uma diferença entre as palavras, embora conclua não haver divergência essencial no significado: a palavra dívida remeteria a questões financeiras, o que deveria ser completamente excluída da Oração do Senhor. Justificativa que não é muito estranha vindo da CNBB…

Passaremos a considerações superiores que excedem a mera linguagem.

Respeito

Ora, não nos deteremos muito aqui. Nosso Senhor revelou Sua Oração com o uso da palavra «debita». Se assim instruiu, assim deve ser ensinado e rezado! Não há mais nada a falar, nenhum jota será mudado daquilo que foi revelado (cf. Mt 5,18).

Nem uma ordem do próprio Deus é respeitada pela criatividade e esquerdismo extremo das conferências episcopais.

Rigor teológico

Em linguagem teológica, dívida não é o mesmo que ofensa.

Ofensa é só o pecado mortal propriamente dito, que ofende a Deus primeiramente.

Dívida é também o pecado venial [2], o enfraquecimento da Caridade, que gera uma obrigação reparável (neste caso pode, também, ser devida a outra pessoa), ou mesmo as penas temporais a pagar nesta vida ou no Purgatório.

A distinção entre esses termos é posta de forma clara por São Lucas:

E perdoai-nos os nossos pecados, pois que também nós perdoados aos que nos devem (Lc 11,4)

É certo que os pecados, que ofendem a Deus, geram dívidas para com Ele. Mas não do mesmo modo que nossas injúrias atingem ao próximo (o que fica claro na passagem acima). É uma tradição teológica reservar o termo para a injúria feita contra Deus de “ofensas”, restando, pois, o termo “dívidas” para aquelas cometidas contra o outro. Portanto, «ofensa» é a dívida maior, a contraída por causa do pecado mortal e, por isso, não deve ser confundida com a mera dívida temporal ou horizontal.

Essa diferenciação pode ser vista numa das orações das abluções (Corpus tuum):

Vosso Corpo, Senhor, que eu recebi e Vosso Sangue, que eu bebi, adiram-se a minhas entranhas; e concede que em mim não permaneça mácula de crime [3], que fui restaurado por puros e santos Sacramentos (Rito Gregoriano ou Tridentino, segunda oração das abluções).

O Sacramento da Eucaristia não pode perdoar os crimes (o pecado mortal), mas a mácula que ele produz, ou seja, os vícios e apegos ao pecado, as más inclinações e as penas temporais.

Outra oração usada em uma Liturgia oriental, prescreve:

Fica em paz, ó Altar de Deus. O Sacrifício que de ti tomei seja para a remissão das dívidas e dos pecados, e me alcance chegar diante do tribunal de Cristo sem condenação e sem confusão. Não sei se me será dado voltar e oferecer sobre ti outro Sacrifício. Protegei-me, Senhor, e conservai a vossa santa Igreja como caminho de verdade e de salvação. Amém (Rito Maronita, oração de despedida do Altar).

A doutrina da Igreja é clara quanto à maneira ordinária de se alcançar o perdão das ofensas: o Sacramento da Penitência. Em outras palavras, a dívida pelo pecado mortal é tão grande (é infinita, de fato) que não podemos pagá-la de forma alguma e ela apenas é pagada por um movimento divino, que é a obra da Redenção operada por Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. Assim, a medida que Deus nos perdoa não é a medida que “perdoamos aos nossos ofensores”, pois que através da confissão dos pecados (unida com, ao menos, a atrição sobrenatural) podemos obter o perdão dos crimes.

Entretanto, nossas dívidas, ou seja, as penas temporais, os apegos e vícios, elas sim podem ser perdoadas à mesma medida que perdoamos as dívidas dos nossos irmãos para conosco.

A tradução nova tem um teor quase pelagiano, porque sugere ao fiel que pode obter o perdão dos pecados perdoando aos outros [4].

Sentido secundário de dívida

A palavra «dívida» tem ainda outro sentido que não tem relação com o pecado, mas com a contingência da criatura em relação ao criador ou em relação aos outros, em outras palavras, do superior com o seu súdito ou subalterno.

Neste sentido, uma dívida pode ser de gratidão, de caridade, de apoio, de obrigação moral etc. Não engloba necessariamente o caráter de insulto contra o outro. Desse modo, toda criatura tem dívidas para com Deus. Até mesmo Nossa Senhora deve a Deus todo o seu ser — sem ruga ou mancha — toda a sua beleza e santidade, embora jamais tenha cometido um pensamento, por menor que seja, que ofendesse a Majestade de seu Filho, que é seu Deus, ou a alguma pessoa sequer. Ela mesma isso atesta:

Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de Sua escrava (Lc 1,46ss).

Nesse sentido, todos têm dívidas para com os outros: os alunos para com seus mestres; os indigentes para com os filantropos…

As relações entre as pessoas geram dívidas, obrigações de justiça que relação alguma têm com pecado ou ofensa. Se, caridosamente, retribuímos o bem que nos é feito, se pagamos nossas dívidas, Deus haverá de perdoar-nos as dívidas para com Ele.

O Pai Nosso como nos está proposto seria impossível de ser rezado pela Toda Pura Mãe de Deus, pois ela jamais pecou, não tendo ofensas a ser perdoadas por Deus.

Conclusão

Percebe-se, facilmente, que não existe fundamento algum para a mudança na tradução do Pai Nosso a não ser a criatividade revolucionária que polui a mente católica atual.

A mudança não se mantém ao argumento do sinônimo, pois não haveria por que mudar. Também não sobrevive ao argumento de alusão a débito, pois é precisamente por essa ideia inerente à palavra “dívida” que Nosso Senhor a empregou na Oração Dominical. É perdoando as obrigações que o próximo tem para conosco, seja moral, seja sobrenatural, que Deus pode perdoar as nossas dívidas para com Ele. Além de passar a ideia errônea de que perdoando a quem nos ofendeu, nossas ofensas a Deus podem ser perdoadas, sem referência alguma à contrição e à confissão dos pecados.

Por fim, é lamentável constatar que o Pai Nosso como é proposto pela tradução portuguesa é de tal sorte que a própria Mãe de seu Autor não poderia proferi-la, pois que jamais ofendeu a Deus.

Digamos o Pai Nosso tal qual foi ensinado por Nosso Senhor e tal qual Sua Mãe pode rezar, para que ela possa sempre se unir a nós em nossas orações e assim possam elas subir a Deus com odor suave para Lhe fazer-nos propício (cf. Sl 140,2).

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Notas

[1] A resposta de todas as saudações feitas pelos ministros sagrados durante a Liturgia sempre é «Et cum spiritu tuo» (E com o teu espírito). Essa resposta é recorrente: ocorre com TODAS as Liturgias da Igreja, seja qual for o rito, o que claramente revela sua origem apostólica. Infelizmente releva também o desprezo da CNBB pela Tradição da Igreja.

[2] Santo Tomás, na sua Suma Teológica (I-II q. 88, aa. 2 e 4), discorre sobre a diferença ESSENCIAL entre o pecado mortal e o venial. O Cardeal Pietro Parente (em Diccionario de Teología Dogmática)  diz que “o verdadeiro pecado é o pecado mortal (…) o venial se chama pecado por analogia, por não ser uma aversão ao fim último, mas um atraso no caminho para ele” (destaque do autor).

[3] Diz Santo Agostinho: “Crime é o que merece condenação; pecado venial é, ao contrário, o que não a merece” (Homilia XLI super Ioan.) e completa Santo Tomás: “Ora, crime é denominação do pecado mortal. Logo, o pecado venial se opõe convenientemente ao mortal” (S.T., I-II, q. 88, a. 1, s.c.).

[4] Pelagianismo é uma heresia que, de forma resumida, pregava que o homem poderia, com seu próprio esforço (sem necessidade da intervenção divina), chegar à perfeição e salvação de si. Assim, a Encarnação, Paixão e Morte de Nosso Senhor, assim como a própria Igreja e a administração dos Sacramentos são desnecessários (ou seja, toda a obra da Redenção), uma vez que o homem por si pode chegar à graça.
Foi severamente combatida por Santo Agostinho e posteriormente condenada pela Igreja, sem antes resistir para uma forma intermediária entre a doutrina católica e o pelagianismo puro (e, portanto, mais perigosa), chamada semipelagianismo.

7 respostas em “O NOVO PAI NOSSO

    • Obrigado, Thiago, fico feliz!

      Outras pessoas disseram o mesmo que você. Mas não é o que eu quis dizer: ofensa é um tipo de dívida; toda ofensa é dívida, mas nem toda dívida é ofensa.

      Por isso modifiquei algumas poucas coisa a fim de torna mais clara minha intenção.

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      • Isso é verdade, nem toda dívida é ofensa, mas o fato de poder ser já torna desnecessário que num ato litúrgico alguém tenha problema em dizer “ofensa”. Se alguém aceita participar de algo em que se usa a tradução oficial, me parece totalmente non sense ficar com frescura fazendo algo diferente do restante da assembleia. Melhor não participar ou, pelo menos, falar apenas pra si.

        Esse texto vai no sentido do seu:

        http://accao-integral.blogspot.com.br/2015/12/das-alteracoes-na-oracao-do-pai-nosso.html

        “O Pai Nosso é a oração que o próprio Cristo nos ensinou. A sua formulação “a qual aprendemos desde pequenos” está avalizada pela tradição da Igreja, e o seu uso perde-se nos séculos e gerações. Talvez nada se deve considerar mais intangível.

        Apesar disso, a Igreja do aggiornamento, que alterou substancialmente o rito da Missa, não podia deixar de pôr a sua marca na nossa oração mas íntima e entranhada, nas palavras do mesmo Cristo. Já temos um Pai Nosso conciliar e aggiornato…

        Trata-se, ao que parece, de um texto novo, idealizado sob o desígnio da mudança pela mudança, e sabe Deus se com outros desígnios. Vamos ao próprio conteúdo do novo texto.

        Substituiu-se nele a petição do perdão de “nossas dívidas” pelo de “nossas ofensas”. Mas, dívida e ofensa são o mesmo?

        Posso ter dívidas com outro (de gratidão, de apoio, de caridade) e não lhe ter ofendido nunca. Inversamente, alguém pode ser nosso devedor e não nos ter ofendido jamais. O que ofende (causa dano, injuria) contrai, certamente, uma dívida com o ofendido (a de repará-lo), mas nem toda a dívida contém ofensa. A oração do Pai Nosso é de uma tal perfeição, sendo de origem divina, que não se pode alterar uma letra sem prejudicá-la.

        Facilmente se compreende o objectivo progressista, se se considera que com a nova formulação, a Virgem Maria não teria podido rezar a oração que o seu Divino Filho ensinou aos homens. Porque a Virgem tinha, certamente, grandes dívidas para com Deus (tê-La criado, tê-La escolhido entre todas as mulheres, tê-La preservado do pecado original, etc), mas jamais cometeu ofensa alguma contra Deus.

        Ensinemos, pois, a nossos filhos a oração que aprendemos de nossa mãe, e que Ele mesmo nos ensinou.”

        Rafael Gambra Ciudad in revista «Roca Viva», Janeiro de 1994.

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        • Se tenho “divida” de gratidão aos meus, por exemplo, preciso pedir que Deus me perdoe essa dívida? Se Nossa Senhora tinha uma “divida” de gratidão a Deus por fazê-la tão santa, ela precisava perdir a Deus para ser perdoada dessa “divida”?

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          • As dívidas de gratidão que temos com Deus são impagáveis, portanto, por mais que nos esforcemos para corresponder ao Seu Amor, sempre restarão dívidas a serem pagas. Por isso pede-se perdão… Ainda que seja Nossa Senhora…
            veja o caso de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi ‘gerado’ pelo Pai, ou seja, recebeu Dele a mesma substância (consubstancial). Se nós, meros mortais, já temos uma dívida enorme com Ele, o que dizer de Quem recebeu da mesma substância, ou seja, foi feito Verbo divino?

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