I ARTIGO: TRINDADE (PARTE 3 DE 4)

Santíssima Trindade

A existência de Deus, Princípio e Fim de todas as coisas, é uma verdade demonstrável e possível de conhecer com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas; a vida íntima de Deus, por outro lado, nunca poderia ser conhecida pela razão criada, mas apenas se manifestado por Ele mesmo.

A realidade dessa vida íntima, absurdamente inebriante e escondida em Deus, apenas poderia ser conhecida pela Revelação:

Ninguém jamais viu Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi Quem O revelou (Jo 1,18).

Essa vida íntima divina consiste, precisamente, no mistério inefável da Trindade de Pessoas em Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo revelou que, em Deus, há três Pessoas realmente diferentes. Essa é a admirável e incompreensível doutrina da Santíssima Trindade, principal mistério da nossa santa Fé católica.

Mistério é uma verdade revelada que excede a razão criada e que, por isso, não se pode compreender inteiramente [1].

Recomendamos a leitura atenta do texto sobre Deus, especialmente o item «Deus: natureza pessoal».

Sabemos, pela razão, que Deus é um ser pessoal e, pela Revelação, que são três o número das Pessoas em Deus. A distinção entre diferentes pessoas (cf. A reencarnação é racional?, item 4), faz-se pela natureza. Como em Deus a natureza é estritamente a mesma, por causa da simplicidade, a distinção das Pessoas em Deus tem que se dar por outra via.

Distinguimos as Pessoas em Deus pelas relações derivadas das processões (ou operações internas).

Deus, puro espírito, opera de duas formas: por via da inteligência e por via da vontade (são os atributos operativos). Essas ações de Deus podem ter duas finalidades. Se o fim a que visa é Ele mesmo, essa operação é dita ad intra (interna). Se visa a algo fora dEle, é chamada operação ad extra (externa).

As operações ad extra de Deus serão vistas em outros textos ─ são exemplos: a criação, a providência, a Redenção…

Pela absoluta simplicidade e indivisibilidade de Deus, todas as ações externas são comuns às três Pessoas divinas concomitantemente (havendo distinção apenas nas ações internas pelas quais se diferenciam as Pessoas).

A processão intelectiva

A nossa inteligência gera [2] em uma imagem (ideia) de algo que é conhecido. Tem-se aqui o sujeito que intelige e o objeto conhecido. Essa imagem tem o nome de verbo. O verbo gerado por nossa inteligência não é da mesma natureza do objeto. Portanto, quando uma pessoa faz uma imagem de algo, esta imagem:

  1. é menor do que é na realidade, pois não conhecemos completamente;
  2. é de uma realidade diferente, pois forma-se uma imagem distorcida, imperfeita e virtual; nossas operações não se confundem com a substância do objeto.

De forma análoga, Deus Se conhece. Aqui o sujeito é Deus; o objeto é Deus também; o que difere o sujeito do objeto é a ação de conhecer (ato da inteligência). Há, pois, nesta processão, duas relações: conhecedor e conhecido.

Em Deus, suas operações para Si são Sua própria substância. O seu pensamento sobre Si é da mesma natureza; portanto, Deus, quando faz uma imagem de Si mesmo, fá-la:

  1. igual à Sua realidade, pois Deus Se conhece completamente, nem mais, nem menos;
  2. de mesma natureza, real.

Deus, na eternidade, antes de tudo (ou no sempre), por Sua inteligência, gera uma autoimagem com igual natureza, ou seja, mesma divindade, pois como o conhecer de Deus é infinito e tudo conhece totalmente, o conhecimento que Deus tem de Si próprio, é exatamente a Imagem perfeita de Si (o Verbo), igualmente divino e eterno; é o Esplendor de Sua substância, é Um igual a Ele. Diz o Verbo de Si mesmo:

Eu e o Pai somos um (Jo 10,30).

À Pessoa que gera chamamos de Primeira Pessoa da Trindade. À Pessoa gerada chamamos de Segunda Pessoa da Trindade [3]. Ao Princípio Gerador (primeira relação), chamamos paternidade; ao Termo Gerado (segunda relação), chamamos filiação.

Daí chamarmos à Primeira Pessoa de Pai e à Segunda, Filho.

Como sugerido pelo nome dado às relações opostas, a relação entre pai e filho é análoga ao que ocorre no seio da Santíssima Trindade, pois este é gerado por aquele.

Como a geração do Filho é o fruto da inteligência, chamamo-lO também de Verbo ou Sabedoria de Deus:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era DeusEle estava no princípio junto de Deus (Jo 1,1s).

A processão volitiva

Após conhecer, o ser racional quer o objeto conhecido ou despreza. Se o conhecimento do objeto relevar ser ele um bem, o ser vai desejá-lo (ou rejeitá-lo se for um mal). Por isso diz-se que a vontade segue a inteligência. Tem-se aqui o sujeito que quer e o objeto querido. Esse querer é o amor (o desprezo é o ódio).

Deus Se quer. Aqui o sujeito é Deus; o objeto é Deus também; o que difere o sujeito do objeto é a ação de querer (ato da vontade). Há, pois, nesta processão, duas relações: amante e amado.

Em seguida a Se conhecer, Deus Se ama perfeitamente e completamente, pois Ele é o Bem. Deus Pai, ao contemplar Seu Filho, Imagem esplêndida de Si mesmo, é levado a amá-lO. E Deus Filho, ao contemplar Seu Pai, Princípio de Si, também é lavado a amá-lO de volta.

Deus, na eternidade, antes de tudo (ou no sempre), de Sua vontade, procede um amor de igual natureza, ou seja, mesma divindade, pois como o querer de Deus é infinito e tudo quer totalmente, Deus quer a Si, exatamente como é, divino e eterno. O amor que Deus tem de Si próprio, é uma processão da mutua inclinação do Pai e do FilhoDeste amor com que Deus Se ama procede Um igual a Ele.

À Pessoa procedente chamamos de Terceira Pessoa da Trindade [4]. Ao Princípio amante (terceira relação) chamamos espiração comum do Pai e do Filho (Filioque) ou espiração ativa; ao Termo amado (quarta relação), chamamos processão ou espiração passiva.

Ao Princípio amante (terceira relação) chamamos espiração [ativa]; ao Princípio amado (quarta relação) chamamos processão (ou espiração passiva).

Não temos na natureza criada nada que seja análogo à processão volitiva e por isso a Terceira Pessoa não recebe um nome específico, mas o de Espírito Santo. De fato, o Pai é espírito e, igualmente, o Filho; e Ambos são santos. Sendo o Espírito Santo comum às duas outras Pessoas, o que se diz comumente a Elas, dEle se diz propriamente (cf. Santo Agostinho De Trin., XV, c. 19; e São Tomás, S.T., I, q.36, a. 1, resp.).

Como o amor procede da vontade, o Espírito Santo é chamado de Amor de Deus (fogo), Paráclito:

Sois chamado de Paráclito, Dom do Deus Altíssimo, a Fonte viva, o Fogo, a Caridade e a unção espiritual (Hino Veni Creator).

Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade (Jo 15,26).

Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo (At 2,3s).

São, assim, três Os que dão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo; e Estes três são um só (IJo 5,7s).

Esta é a Trindade que Santo Agostinho tentou explicar:

Quisera meditassem os homens sobre três coisas que têm dentro de si mesmos, as três bem diferentes da Trindade. Indico-as, para que se exercitem, e assim experimentem e sintam quão longe estão desse mistério. Aludo à existência, ao conhecimento e à vontade. De fato, existo, conheço e quero. Existo, sabendo e querendo; sei que existo e quero; quero existir e conhecer. Repare, quem puder, como é inseparável a vida nessas três faculdades: uma só vida, uma só inteligência, uma só essência. Como são inseparáveis os objetos dessa distinção. Distinção, no entanto, que existe! Cada um está diante de si mesmo. Estude-se, veja e responda-me. Contudo, mesmo que reflita e me responda, não julgue ter compreendido a essência deste Ser imutável que está acima de todas as criaturas, o Ser que imutavelmente existe, imutavelmente sabe e imutavelmente quer. Será porventura graças a essas três faculdades que há em Deus a Trindade, ou essa tríplice faculdade existe em cada uma das três Pessoas, de modo a serem três em cada uma? Ou ambas as coisas se realizam de modo admirável, numa simplicidade múltipla, sendo a Trindade o Seu próprio fim infinito, pela qual existe, Se conhece e Se basta imutavelmente, na grande abundância de Sua Unidade? (Confissões, XIII, 5).

O erro do ortodoxismo

O princípio de espiração não é uma única Pessoa, mas duas Pessoas (o Pai e o Filho), pois o amor divino é recíproco. Portanto, a Terceira Pessoa procede do Pai e do Filho como que de um único princípio (cf. Concílio de Florença, 1439, Denz. 691).

A Igreja Ortodoxa, criada a partir de divergências doutrinárias com a Igreja de Cristo, tem outra crença a respeito da processão eterna do Espírito Santo. Para os cismáticos gregos, o Espírito Santo procede eternamente apenas do Pai e do Pai pelo Filho em Sua missão temporal (chamada de economia da salvação).

Diversamente, na doutrina revelada o Pai não ama só, como afirmam os cismáticos gregos, mas ama e é amado pelo Filho. Caso o Espírito Santo apenas procedesse do Pai, não haveria uma Trindade de Pessoas. A Pessoa do Filho não diferiria da Pessoa do Espírito Santo, pois ambas teriam origem só na Pessoa do Pai (Figura).

ortxcat211

O erro cismático é claramente confirmado pelas Tradição e Escritura:

Espírito Santo não é feito, nem criado, nem gerado pelo Pai e pelo Filho, mas é dEles procedente (Símbolo de Santo Atanásio).

O Espírito Santo, que o Pai enviará em Meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas (Jo 14,26).

Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de Mim (Jo 15,26).

Ele [o Paráclito] Me glorificará, porque receberá do que é Meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai possui é Meu. Por isso, disse: Há de receber do que é Meu, e vo-lo anunciará (Jo 16,13-15).

Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é dEle (Rm 8,9).

Eles investigaram a época e as circunstâncias indicadas pelo Espírito de Cristo (IPd 1,11).

Mostrou-me então o Anjo um rio de água viva resplandecente como cristal de rocha, procedendo do trono de Deus e do Cordeiro (Ap 22,1).

*

Heresias trinitárias

Além da heresia dos cismáticos gregos, houve duas outras mais antigas: monarquismo dinâmico ou adocionismo (séc. II) e monarquismo modal ou modalismo (séc. III).

  • Adocionismo professava a existência de uma só pessoa em Deus, mas que comunicou uma força divina (dynamis) a Nosso Senhor, adotando-O como Filho. Em sentido contrário, os Padres afirmam “nascido do Pai antes de todos os séculos”:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era DeusEle estava no princípio junto de Deus (Jo 1,1s).

  • Modalismo foi uma doutrina de Sabélio (por isso também chamada de sabelianismo), dizia não existir a Trindade, isto é, para ele em Deus havia apenas um Pessoa e não três. Acrescentou-se ao Símbolo: “Deus vindo Deus, luz da luz, Deus verdadeiro nascido de Deus verdadeiro”:

E, se julgo, o Meu julgamento é conforme a verdade, porque não estou sozinho, mas coMigo está o Pai que Me enviou. Ora, na vossa lei está escrito: O testemunho de duas pessoas é digno de Fé. Eu dou testemunho de Mim mesmo; e Meu Pai, que Me enviou, o dá também (Jo 8,16-18).

Porque três são os que testemunham no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo (I Jo 5,7).

***

Resumo

A geração parte do ser Gerador para o ser Gerado, eternamente.

A processão ocorre entre duas Pessoas que Se amam eternamente das quais procede uma Pessoa de divindade igual a Elas duas.

Portanto a geração parte do Pai para o Filho como um espelho.

A espiração deriva do amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai, promovendo uma processão a partir do amor mútuo, por isto o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.

[Vós, Pai] com o vosso unigênito Filho e o Espírito Santo, sois um só Deus, sois um só Senhor; não na unidade de uma só pessoa, mas na Trindade de uma só substância. Com efeito, o que de vossa glória, por vossa revelação cremos o mesmo do vosso Filho, o mesmo do Espírito Santo, e reconhecemos sem diferença ou separação. Para que, na confissão da verdadeira e sempiterna Deidade, a propriedade nas pessoas, a unidade na essência e a igualdade na majestade sejam adoradas (Prefácio da Santíssima Trindade).

Isto tudo se dá em um mistério inexprimível:

Quem poderá compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dEla, ainda que não a compreenda? É rara a pessoa que, ao falar da Santíssima Trindade, saiba o que diz. Discute-se, debate-se, mas ninguém é capaz de contemplar essa visão, sem paz interior (…) Quem poderia exprimir facilmente esse conselho? Quem teria palavras para o exprimir? Quem, de algum modo, ousaria pronunciar-se temerariamente a esse respeito? (Santo Agostinho, Confissões, XIII, 5).

A Sagrada Escritura atesta-o com uma advertência:

Quem quer sondar a Majestade [divina], será oprimido pelo peso de Sua glória (Pr 25,27).

Resta-nos, portanto, apenas dizer com a Igreja:

A Vós o louvor, a Vós a glória, a Vós a ação de graças, ó Beatíssima, ó Bendita, ó Gloriosa Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo (Rito Carmelita, oração pós-comunhão).

________________
Notas

[1] Entre os vários mistérios propostos pelo Depósito através da Igreja, o primeiro e principal é o da Santíssima Trindade, verdade que apenas pela da Revelação divina poderia ser conhecida pelo homem. Depois deste, vem o mistério da Redenção, i.e., a Encarnação, a Paixão e a Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estes são, portanto, os principais mistérios da Fé.
Tais mistérios, a Santíssima Trindade e a Redenção, são sumamente bem representados no sinal da Cruz, motivo pelo qual ele é odiado pelos demônios.

[2] Gerar se opõe a criar; criar é trazer à existência do nada, enquanto gerar é tirar algo de si mesmo.

[3] Uma boa nota sobre isso é que o termo primeira e segunda é deficiente, como não poderia ser diferente já que tentamos, por palavras humanas, expressar o mistério mais excelso da Fé. A Primeira Pessoa não é anterior à Segunda Pessoa, já que Deus é eterno.

[4] Novamente é bom relembrar que as processões ad intra ocorrem na eternidade e, por isso, a Terceira Pessoa não é posterior às outras duas, mas as três são coeternas.

3 respostas em “I ARTIGO: TRINDADE (PARTE 3 DE 4)

    • “Pela absoluta simplicidade e indivisibilidade de Deus, todas as ações externas são comuns às três Pessoas divinas concomitantemente (havendo distinção apenas nas ações internas pelas quais se diferenciam as Pessoas).”

      Acho que aqui cabe uma correção, pois isso é assim, mas com duas exceções: a Encarnação, e a Paixão e Morte, que são só da Segunda Pessoa.

      Curtir

Deixe um comentário